Texto: POSITIVISMO – Seminário Friedrich Müller

Este texto foi utilizado/trabalhado pela professora Altair, da cadeira de Introdução ao Direito, quando da aula extra do dia 24.09.11. Ocasião em que se iniciou a abordagem do Positivismo Jurídico.

POSITIVISMO

Seminário Friedrich Müller

Tradução de Peter Naumann

Revisão de Paulo Bonavides

A. Sobre o conceito

A expressão «positivismo» foi cunhada por Auguste Comte, cujo «Cours de la philosophie positive» foi publicado entre 1830 e 1842. Tendo como pano de fundo o avanço das ciências naturais, o positivismo pretendeu integrar todo o conhecimento humano por meio da metódica empírica exata, liberta de toda e qualquer interpretação metafísica. A ciência deveria partir apenas dos fenômenos reais. A filosofia investigaria apenas as relações entre as ciências individuais e os seus métodos e extrairia [arbeitet heraus] leis (como a lei comteana dos «três estágios»). Os fatos da experiência não seriam mais obrigados a justificar-se perante a instância da razão. A última instância seria o que é dado simplesmente [das schlechthin Gegebenene], cuja crítica científica ficou assim simultaneamente bloqueada. Os positivistas do séc. XIX (ao lado de Comte e.g. Hippolyte Taine, John Stuart Mill, Herbert Spencer, Ernst Mach, Richard Avenarius) retomaram assim teses importantes dos enciclopedistas franceses (d’Alembert, Turgot, Condorcet) e dos empiristas ingleses dos séculos XVII e XVIII (Locke, Hume). Modelos em parte formalistas, em parte sensualistas já aparecem na Antiguidade (e.g. Protágoras). Mas o recurso à Sofística grega é ambivalente na medida em que essa tradição tinha simultaneamente introduzido a ideia não-empirista, metafísica do Direito Natural.

O neopositivismo do séc. XX tem as suas origens no empiriocriticismo e se fortalece com a influência do assim chamado Círculo de Viena (Schlick, Carnap, Reichenbach e outros), que se dedicou sobretudo à crítica dos conceitos e da ciência.

Visto na perspectiva específica da ciência jurídica e ao mesmo tempo estreitamente vinculado ao positivismo filosófico, esse positivismo da postura científica, nuclearmente filosófico, é uma perspectiva [Einstellung] que pode ser denominada «positivismo da vigência do direito». Também ela principia na Antiguidade (sofistas gregos), nunca desaparece de todo da discussão (nominalismo) e também começa a impor-se amplamente em meados do séc. XIX num surto histórico. Também aqui se parte de algo incontestavelmente factual, do que é «positivamente dado». Impõe-se a pergunta pela natureza da positividade do direito. Distingue-se nesse tocante entre o positivismo psicológico (e.g. Bierling, Merkel, Jellinek, Beling), o positivismo sociológico (Ehrlich, Weber, Geiger) e o positivismo legalista de natureza estatalista. Este último identifica a positividade do direito no fato dele ter sido instituído e garantido (com apoio da coerção) por uma instância estatal de poder. O direito é idêntico às leis do Estado, elaboradas de modo correto. Questões de conteúdo não podem desempenhar nenhum papel para esse conceito de direito positivo, normas naturais ou éticas não têm nenhum interesse para ele. Essa despedida rigorosa do Direito Natural foi formulada pelo Tribunal do Reich [Reichsgericht] em 1928 nos seguintes termos: «O legislador é senhor de si mesmo [selbstherrlich] e não está vinculado a nenhuma barreira exceto às que ele mesmo levantou para si na constituição ou em outras leis» (RGZ 118, 327). A «Teoria pura do direito» de Kelsen também elimina da ciência jurídica todas as valorações e todas as concepções do que é correto [Richtigkeit], enquanto desprovidas de sentido do ponto de vista científico. Segundo Kelsen, a ciência jurídica só pode tornar-se uma ciência enquanto teoria das «formas puras» do direito; por isso «qualquer conteúdo pode ser direito». O desaparecimento da axiomática jusnaturalista e, consequentemente, de toda e qualquer dignidade supra-empírica do direito positivo ensejou ao mesmo tempo a potenciação global, sobretudo no círculo dos práticos do direito, d»a conformação [Fügsamkeit] fática ao poder-violência [Gewalt] das respectivas potências, que se comportam como legítimas» (Max Weber).

O positivismo filosófico deve ser discutido pela teoria da ciência [Wissenschaftstheorie] e pela história da ciência. O positivismo da vigência do direito continuou sendo a atitude básica predominante entre os juristas; o alegado «eterno retorno do direito natural» limitou-se aos anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial e a um fugaz reacendimento, que não deixou nenhuma impressão digna de menção. Em contrapartida, o positivismo jurídico em questões de método, o «positivismo do tratamento da norma» continua sendo um problema a ser trabalhado pela ciência jurídica. Só ele é designado a seguir como «positivismo».

B. Discussão do positivismo jurídico em questões de método

Como o direito racional, contra o qual ele se volta simultaneamente na pergunta pelo fundamento da vigência do direito, o positivismo pensa axiomaticamente e quer conceber as codificações como sistema fechado, ao qual devem caber unidade bem como coerência [Geschlossenheit], entendida no sentido de completude bem como no de ausência de contradições. Procede pela dedução lógica a partir da totalidade sem lacunas do sistema legal. A aplicação do direito não deve consistir de nada mais. Ao direito racional todo e qualquer comportamento social humano se afigurara normatizável e antecipável. Posteriormente a ciência das pandectas, o positivismo e a jurisprudência de conceitos [Begriffsjurisprudenz] não mais compreenderam ingenuamente o direito positivo, mas o seu próprio sistema conceitual enquanto fechado em si mesmo, derivável e isento de contradições. Todos os casos jurídicos pareciam solucionáveis pela subsunção silogística, os conceitos jurídicos deveriam colocar à disposição um número fixo de axiomas. Já a genealogia dos conceitos de Puchta e a sua «pirâmide conceitual» anteciparam a ideia do sistema no sentido da complementabilidade das normas existentes por meio de princípios e conceitos científicos. Tanto eles como também as prescrições positivas são confundidas com dados imediatos no sentido de coisas da natureza. O que só pode ser a operação [Leistung] do pensamento abstrativo transmuda-se involuntariamente em ontologia problemática [schiefe Ontologie], em suposição pseudo-jusnaturalista. O sistema jurídico alegadamente fechado, sem lacunas, harmônico, abstratamente coisificado, pode ser manuseado de forma autosuficientemente formalista quando se descura das suas premissas e funções históricas e políticas. A função legitimista do positivismo em favor da restauração política e de reação antiliberal depois de 1848/1849 mostrou-se de forma especialmente nítida no Direito Constitucional [Staatsrecht]. Von Gerber denominou com suficiente clareza a prestação da garantia do status quo político como finalidade do modo positivista-construtivista de tratamento do Direito Constitucional. Também em autores como Zachariä, Mohl e Bluntschli o «método jurídico» é tanto expressão quanto instrumento de uma determinada posição em questões de conteúdo. Depois de 1870 essa posição consistiu sobretudo em blindar a concepção monárquico-conservadora do Estado, a política antiliberal e, genericamente, as relações políticas e sociais existentes contra uma crítica possível. Assim, para citar um exemplo, questões jurídicas em aberto não podem surgir nem na opinião de um Laband. Cada problema novo já está solucionado, por força da necessidade inerente ao próprio pensamento; lacunas na regulamentação expressa – ou, para ser mais exato: lacunas nos textos das normas – devem ser preenchidas com a necessidade de leis pseudo-naturais [pseudo-naturgesetzlicher Notwendigkeit] pela construção jurídica a partir de enunciados fundamentais [Grundsätze] e princípios orientadores. Os nexos sociais não são negados, mas postos de lado por não interessarem a ciência jurídica. A dogmática deve ser escoimada da história, da filosofia, da política e da economia, quer dizer, de todos os elementos «não-jurídicos». Esse resultado responde à pergunta inicial do positivismo: como a ciência jurídica pode ser uma ciência autônoma? Segundo ele as normas jurídicas não devem ser tratadas como conexas a dados sociais. Encontra-se reprimido [verdrängt] tudo aquilo, com base em que o fazer dos juristas é demandado e usado e com base no qual ele funciona. A «autonomia científica» da ciência jurídica deveria comprovar-se na sua qualidade de constituir «o fundamento da dedução jurídica segura» (von Gerber). Passou desapercebido o fato de que aqui só foram apreendidos textos de normas, só dados de linguagem, mas não as normas. A insistência do positivismo na matéria jurídica positiva já fracassa liminarmente na sua falta de referência à realidade, quando só a forma linguística de normas, mas não as próprias normas enquanto configurações complexamente estruturadas são acessíveis como «matéria jurídica positiva». O que partiu do enfoque científico antijusnaturalista do positivismo filosófico transmuda-se debaixo do pano novamente em direito natural burguês de duvidosa qualidade; pois o feixe dos postulados positivistas (unidade, sistema, ausência de lacunas, ausência de contradições no direito) «está acima do direito instituído e do legislador» (Burckhardt).

A crítica tradicional desde a escola do direito livre e da jurisprudência de interesses [Interessenjurisprudenz] não se referiu à aporia fundamental do positivismo, mas restringiu-se a questões individuais. Contra o dogma da coerência do sistema jurídico ela remeteu à sua lacunosidade, aos «contornos flutuantes», ao «halo conceitual» (Heck) dos conceitos jurídicos. Atestava-se aos juízes a competência de preencher as lacunas por decisões valorativas. Mas a tese do direito jurisprudencial só atinge superficialmente o positivismo. Ela se liga antes ao fato de que a «situação do autômato jurídico, vinculado à mera interpretação de parágrafos e contratos, no qual se joga as circunstâncias de fato ao lado das custas, para que ele ejete a sentença ao lado das razões» se afigura «subalterna» (Max Weber), pois a reclamação da «atividade jurídica criativa» para o juiz se enreda de imediato nas mesmas contradições da compreensão da norma, que já condenaram o positivismo ao fracasso. Na sua insistência na «positividade» depurada da realidade, o positivismo aceitou o preço [nahm in Kauf] da perda da normatividade jurídica. O ideal de método de uma ciência natural, que ainda não tinha perdido a certeza de si mesma, foi transferido acriticamente ao direito; o próprio direito foi compreendido equivocadamente como ser centrado em si [in sich ruhendes Sein], a norma jurídica foi compreendida equivocadamente como ordem, como juízo hipotético, como vontade materialmente vazia e como primeiro enunciado [Obersatz] do silogismo, formalizado em termos da Lógica Formal. O direito e a realidade, a norma e o segmento normatizado da realidade estão «em si» justapostos sem nenhuma relação, são contrapostos reciprocamente com o rigorismo da separação neokantiana de «ser» e «dever ser», devem encontrar-se somente por via da subsunção do estado de coisas [Sachverhalt] a um primeiro enunciado [Obersatz] de caráter normativo. Subjaz a isso a confusão das normas com os seus textos, ainda predominante. De acordo com essa orientação, a metódica ainda é vista apenas como metódica da exegese de fórmulas linguísticas. Considera-se metajurídico o que deveria ser elaborado fora do texto da norma. Só o exame de palavras deve conduzir a informações sobre a «essência jurídica» e.g. de um instituto jurídico. Mas a pergunta pelo papel da realidade no direito não pode ser solucionada pela sua eliminação. Contra tal acepção a norma jurídica apresenta-se ao olhar realista como uma estrutura composta pelo resultado da interpretação de dados linguísticos (programa da norma) e do conjunto dos dados reais conformes ao programa da norma (âmbito normativo). Nessa estrutura a instância ordenadora e a instância a ser ordenada devem ser relacionadas por razões inerentes à materialidade da questão [sachlich zusammengehören]. O texto da norma não é aqui nenhum elemento conceitual da norma jurídica, mas o dado de entrada/input mais importante do processo de concretização, ao lado do caso a ser decidido juridicamente.

C. Tarefas

Hoje o positivismo clássico praticamente não é mais representado como posição programática, mas ele continua atuando inexpressamente com alguns erros fundamentais e numerosos fatores individuais na práxis amplamente não-refletida assim como nas aporias levadas como herança pela teoria da norma e do método. A Escola do Direito Livre, a jurisprudência de interesses [Interessenjurisprudenz] e a ciência jurídica sociológica, a Tópica, a Hermenêutica, a teoria integracionista e outros antipositivismos esforçaram-se debalde em «superar» o positivismo. Parece mais correto não regredir nesse esforço para aquém do positivismo, não deixar de atingir o seu padrão de tecnicidade. Trata-se de retomar o que foi reprimido pelo positivismo e elaborá-lo de forma generalizável na dogmática, metódica e teoria. Os objetivos do positivismo de cientificizar na medida do possível a ciência jurídica e de elaborar uma dogmática racional não merecem ser esquecidos em benefício de exigências menores no tocante à racionalidade e à honestidade em questões de método. A «superação» do positivismo não é de modo nenhum um fim legítimo em si mesmo. Enquanto concepção sistematicamente pós-positivista, a Teoria Estruturante do Direito não aposentou apenas a redução da norma ao seu texto, do ordenamento jurídico a uma ficção artificial, da solução do caso a um processo logicamente inferível por meio do silogismo, mas desenvolveu, partindo da estruturação de normas jurídicas, a proposta de um modelo de teoria e práxis que abrange a dogmática, a metódica, a teoria do direito e a teoria constitucional e não continua devendo a resposta ao positivismo.

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