Abaixo texto muito interessante indicado pelo colega Dr. Gustavo, onde se discute ‘na concretude’ as implicações da necessidade ou não da ação pública contra crimes do §9º do art. 129 do CP estar ou não condicionada à representação.
Rose da Penha
Eram 7h30 da manhã, em Samambaia, DF, quando policiais ajudaram seu Geraldino a socorrer a nora, Rose, praticamente inconsciente, após ter sido espancada pelo companheiro. Após uma noite inteira de bebedeira, José voltou para casa embriagado e começou a socar e a chutar Rose repetidamente. Não satisfeito, pegou um pedaço de pau e bateu por várias vezes na cabeça de Rose, que gritava por socorro.
Esse é o depoimento que seu Geraldino prestou contra o próprio filho, na 33ª DP. Enquanto tentava impedir que Rose continuasse a ser brutalmente espancada, seu Geraldino ouviu de José: “Ó veio, se você for na delegacia, quando eu voltar, eu te mato”. Ele tinha motivos para acreditar na ameaça do filho. Poucos meses antes, José tinha espancado o pai e lhe quebrado a perna, o que resultara em cirurgia para a fixação de seis pinos. As mesmas ameaças eram repetidas vezes direcionadas a Rose, para quem José sempre dizia: “Se você der parte de mim, eu te mato quando sair da cadeia”.
Esses são os fatos subjacentes ao processo no qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a ação penal decorrente de lesões corporais leves está condicionada à representação da vítima. Ainda que o delito seja cometido contra a mulher, no contexto da violência doméstica.
A decisão servirá de moldura interpretativa para diversos casos similares que tinham sido suspensos no aguardo da diretriz do STJ. Agora, todos eles serão processados apenas se a mulher vitimada oferecer a competente representação. Caso contrário, a punibilidade do agressor estará extinta.
O STJ deve fixar a melhor interpretação da lei federal, no caso, a Lei Maria da Penha, cujo nome é emprestado da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. Assim como Rose, Maria da Penha foi agredida pelo então marido, que tentou matá-la por duas vezes: a primeira com um tiro, simulando um assalto; a segunda, por eletrocutação.
As similaridades cessam por aqui. Enquanto Maria da Penha mobilizou a sociedade em torno da aprovação de uma lei que pudesse proteger mulheres como ela, Rose – que é praticamente analfabeta, do lar e não possui sequer registro de identidade – não ofereceu a representação contra o agressor. E não o fez porque nem sequer sabia o que era uma representação e que, sem ela, o seu agressor ficaria impune.
Rose e Maria da Penha pertencem a mundos separados por um abismo socioeconômico mas que se encontram em uma triste inflexão. Ambas foram vítimas do mesmo crime: a violência diuturnamente perpetrada contra as mulheres na intimidade do que deveria ser o mais sagrado, o lar.
A Lei Maria da Penha pretendeu proteger as mulheres vitimadas. Contudo, a partir do entendimento do STJ, somente a mulher poderá avaliar a conveniência de iniciar, ou não, um procedimento contra o membro da família que a espancou. Nesse ponto, surge a primeira pergunta: dos bens jurídicos a serem tutelados, qual o mais importante: a integridade física da mulher violentada no lar ou a suposta conveniência para avaliar se quer ou não representar contra o agressor?
A opinião pública se mobilizou em torno do tema. Para a Defensoria Pública, que defendeu José e a condicionalidade da ação penal, valorizar a mulher vítima de violência doméstica é dar a ela proteção, assistência, voz e possibilidade de enfrentar e entender seus conflitos. Mas como a extinção da punibilidade de José pode ajudar Rose a entender por que ele a espancou? A quem, de fato, a condicionalidade da ação penal protege: à mulher espancada ou ao marido agressor?
A Themis assessoria jurídica e estudos de gênero sustentou, vencida, que a exigência de representação nos crimes de lesão corporal de natureza leve, qualificados pela violência doméstica, é obstáculo à afirmação dos direitos fundamentais, à dignidade, à liberdade e à integridade física e psíquica das mulheres. Um simulacro que, sob pretexto de assegurar o protagonismo da vítima, obstaculiza a punição do agressor.
Será que o entendimento fixado pelo STJ é o que melhor cumpre o desejo do legislador de proteger tanto a Maria quanto a Rose, bem como as mulheres que são recorrentemente violentadas, no recôndito do lar, por aqueles que deveriam amá-las e protegê-las?
A Lei Maria da Penha é um dos mais importantes instrumentos jurídicos para o enfrentamento de grave problema social, fruto de discriminação específica que afeta fortemente as mulheres: a violência doméstica e familiar. O enfrentamento desse fato social, que torna as mulheres vítimas e reféns da própria história, passa pelo reconhecimento dessa especificidade como qualificadora dos delitos de lesões corporais, com a consequente incondicionalidade da ação penal.
Afinal, qual instrumento se mostrará mais eficaz para resgatar o protagonismo da mulher: a condicionalidade da ação penal ou a efetiva punição do agressor? São muitas as indagações, mas à Justiça compete respondê-las de olhos abertos para a dura realidade social brasileira. O mundo da vida vai muito além do discurso e de meras construções formais que, no limite, podem redundar no esvaziamento da eficácia protetiva da Lei Maria da Penha e na poda da capacidade constritiva dos direitos de milhares de Josés que, agora mesmo, violentam as suas Roses.
Damares Medina para o Correio Braziliense, 02/03/2010
Ps.: Este assunto foi tratado na Aula 08 de Direito Penal – 22.03.13.
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“Um simulacro que, sob pretexto de assegurar o protagonismo da vítima, obstaculiza a punição do agressor”
Carissimo este tema para mim! Embora as mulheres venham ocupando mais espaço na vida intelectual e econômica, como tudo no Brasil, existe esse abismo sócio econômico que redunda numa falsa impressão de emancipação feminina. Digo falsa, pois boa parte das mulheres ainda continua subjugada e apartada de seus direitos. E o mais engraçado e que justamente as elites, mais esclarecidas, ignoram isso e acreditam que defender uma posição mais feminista e dispensável ( e ridículo). Suspeito que elas ( ou eles!) julguem que as “mulheres” sao somente aquelas de seus seletos círculos sociais. Seria interessante constatar que a comunidade feminina e bem maior que o universo da nossa faculdade ou trabalho… também existe a realidade das Roses, e nestas o direito tem mais dificuldade de se efetivar.
Que bom ler este texto! Bela pausa no estudos de obrigações!