Nunca pensei que um ‘simples’ e rápido debate (ocorrido quando da aula de Direito Penal última passada, oportunidade em que o professor Lasaro Silva, detalhava alguns aspectos da lei nº 9.455/1997 – promulgada na gestão de FHC, que trata dos crimes de tortura) pudesse ser motivador para que o nosso colega Fábio Mafra nos brindasse com um texto sóbrio e bastante esclarecedor (abaixo).
Confesso que quando da leitura reformulei alguns dos meus pensamentos e refleti bastante sobre o assunto. Reservo, entretanto, o direito de omitir qualquer comentário a respeito, por entender que ainda não tenho subsídios suficientes para discutir um assunto tão complexo e polêmico. Todavia, de plano, também compactuo com o viés legalista e rechaço qualquer argumentação de utilização da tortura.
Pretendo voltar aqui e registrar a minha opinião sobre o tema…
“Queridos,
Refleti no final de semana e minha conclusão é de que não vale muito a pena levar nossa discussão adiante, pelo menos da forma confusa como ela estava se dando. Gostaria antes de propor algumas reflexões, para que a coisa fique um pouco mais clara e, a partir dai, possamos ter uma conversa mais produtiva. O texto ficou um pouco longo, mas recomendo a leitura.
Inicialmente, é preciso separar duas coisas muito distintas: posições políticas e fatos históricos. Respeito total à quem defende o regime militar que durou 30 anos no Brasil pelas bandeiras políticas empunhadas na época: desenvolvimentismo, nacionalismo, economia de mercado com financiamento externo, ação do Estado como indutor do crescimento, parceria com grande grupos internacionais para um projeto ‘integração nacional’, enfim.
No campo ideológico, era uma época diferente, de radicalizações no mundo inteiro – movimento hippie, Vietnã, Guerra Fria, Cuba, enfim, um mundo em ebulição, cujas potências dividiam-se entre capitalistas e comunistas. Concordar ou não, estar deste ou daquele lado, é totalmente justificável e até elogiável.
É imperativo, contudo, separar opiniões políticas dos fatos históricos. Não podemos negá-los. Contra fatos não há argumentos, não se trata de uma questão de opinião, de gostar ou não, de achar ou não. Aconteceu, e isso simplesmente não muda. A partir desses fatos, sim, tecemos opiniões e explicações.
Tivemos um governo militar no Brasil, de 1964 a 1985, que suprimiu direitos e liberdades, entre elas a liberdade de expressão. Fecharam o congresso nacional para reabri-lo em um sistema bipartidário, uma nova constituição foi promulgada e os famosos atos institucionais davam amplos poderes aos militares-governantes. O AI-5, a título de exemplo, que vigorou de 1967 a 1978, limitava uma série de liberdades constitucionais: concedia poder ao Presidente da República para dar recesso a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas (estaduais) e Câmara de vereadores; intervir nos estados e municípios, sem respeitar as limitações constitucionais; suspender os direitos políticos, pelo período de 10 anos, de qualquer cidadão brasileiro; cassar mandatos de deputados federais, estaduais e vereadores; proibia manifestações populares de caráter político; suspendia o direito de habeas corpus (em casos de crime político, crimes contra ordem econômica, segurança nacional e economia popular) e impunha a censura prévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.
Nesse período, muitas vozes se levantaram, para lutar das mais variadas formas. Nas universidades, nas igrejas, na arte, e também na clandestinidade, armados, acreditando ser esse o melhor caminho. Os projetos e pensamentos de cada uma dessas pessoas ou grupos eram extremamente distintos: daqueles que sonhavam com a implantação de um regime comunista radical àqueles que simplesmente queriam a volta da democracia.
Foram formados grupos armados radicais, como MNR – Movimento Nacional Revolucionário; ALN – Ação Libertadora Nacional; MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro; VPR – Vanguarda Popular Revolucionária; AP – Ação Popular; POLOP – Política Operária; VAR-Palmares – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, entre outros. Neles militaram pessoas conhecidas, que hoje atuam na política brasileira. Dá pra citar, assim por cima, a presidenta Dilma Rousseff (PT), o senador por São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB), o ex-deputado Fernando Gabeira (PV) – esse chegou a sequestrar o embaixador dos Estados Unidos. Eram, na maioria das vezes, estudantes, professores, intelectuais e políticos – quase todos, importante frisar, sem qualquer treinamento militar.
De outro lado, teve uma turma enorme, gigantesca, majoritária, que não acreditava na força das armas, mas das ideias, do pensamento. Esses incluem Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Ulysses Guimarães, José Serra, Mário Covas, Frei Betto, Dom Paulo Evaristo Arns, José Serra, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, e mais uma infinidade de políticos, jornalistas, artistas, estudantes, trabalhadores, enfim… Muitos deles foram exilados, buscando abrigo e proteção no exterior.
Militantes das duas ‘correntes’ foram violentamente torturados pelo governo militar, nos porões de órgãos como DOI-CODI, PE e outros. Eram técnicas brutais, aplicadas em homens e mulheres, não importa de que idade. Boa parte dos relatos está registrada num importante documento histórico chamado “Brasil: Nunca Mais”, com depoimentos coletados em processos judiciais. Outros estão aparecendo agora com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e a divulgação de documentos tidos como secretos. Além disso, a produção artística é farta de relatos, biografias e registros do período. Posso indicar muitos livros, filmes, músicas, reportagens, enfim. Reproduzo um pequeno trecho do “Brasil: Nunca mais”. Como esse, há centenas de outros:
(..) que em determinada oportunidade foi-lhe introduzido no ânus pelas autoridades policiais um objeto parecido com um limpador de garrafas; que em outra oportunidade essas mesmas autoridades determinaram que o interrogado permanecesse em pé sobre latas, posição em que vez por outra recebia além de murros, queimaduras de cigarros; que a isto as autoridades davam o nome de Viet Nan; que o interrogado mostrou a este Conselho uma marca a altura do abdômem como tendo sido lesão que fora produzida pelas autoridades policiais (gilete); (…)
(..) obrigaram o acusado a colocar os testículos espaldados na cadeira; que Miranda e o Escrivão Holanda com a palmatória procuravam acertar os testículos do interrogado; (…) o acusado sofreu o castigo chamado “telefone”, que consiste em tapas dados nos dois ouvidos ao mesmo tempo sem que a pessoa esteja esperando; que, em virtude deste castigo, o acusado passou uma série de dias sem estar ouvindo; que três dias após o acusado ao limpar o ouvido notou que este havia sangrado; (…)
(..) foi o interrogado tirado do hospital, tendo sido novamente pendurado em uma grade, com os braços para cima, tendo sido lhe arrancada sua perna mecânica, colocado um capuz na cabeça, amarrado seu pênis com uma corda, para impedir a urina; (…) Que, ao chegar o interrogado à sala de investigações, foi mandado amarrar seus testículos, tendo sido arrastado pelo meio da sala e pendurado para cima, amarrado pelos testículos; (…).
Elucidativas, também, as palavras do falecido psicanalista Hélio Pelegrinno:
A tortura destrói a totalidade constituída por corpo e mente, ao mesmo tempo que joga o corpo contra nós, sob forma de um adversário do qual não podemos fugir, a não ser pela morte. A tortura transforma nosso corpo – aquilo que temos de mais íntimo – em nosso torturador, aliado aos miseráveis que nos torturam. Esta é a monstruosa subversão pretendida pela tortura.
Ela nos racha ao meio e, no centro desta esquizofrenia, produzida em dor e sangue, crava a sua bandeira de desintegração, terror e discórdia.
O corpo, na tortura, nos acua, para que nos neguemos enquanto sujeitos humanos, fiéis aos valores que compõem nosso sistema de crenças.
Bom, se não é possível negar – e acredito que ninguém o faça – que houve tortura no Brasil, o segundo ponto é justificá-la, olhando para trás. Aqui se abre uma porta de discricionariedade: pode-se concordar com ela ou não. Alguns argumentos são comuns. Vamos à eles:
“Era uma guerra”
Um tanto desproporcional essa guerra: todo o aparato do Estado e das Forças Armadas contra os minguados e desarticulados ‘guerrilheiros’.
“Eles também praticaram crimes”
Pois bem, que os punissem pelos crimes: assassinatos, assaltos a banco, sequestro, etc. Até onde eu saiba, a tortura nunca esteve entre as penas previstas em nosso código penal. E mais: alguém tem conhecimento de relatos de militares torturados por subversivos?
“Se eles tomassem o poder, fariam o mesmo, como fizeram em Cuba ou na União Soviética”.
Essa eu acho das melhores: supondo que ‘eles’, os perigosos esquerditas, matarão e torturarão quando chegarem ao poder, matemos e torturemos nós, antes deles! Na essência, a ação seria justificada numa suposição não realizada, com base no exemplo de outros países. É a mesma coisa que uma pessoa bater em seu filho, antes que ele faça uma estripulia, porque o filho da vizinha quebrou o vaso da sala.
Mas volto a afirmar: aqui há discricionariedade. As pessoas podem escolher se apoiam a tortura como instrumento eficaz para alcançar determinado fim. Combater a ação de “subversivos”, obter uma confissão de assassinato, punir e repreender, enfim. Questão de opinião. É justamente aqui que está o ponto nevrálgico de toda a discussão.
Respeito, democraticamente, o direito de opinião. Formei-me jornalista, profissão na qual milito até hoje, acreditando cegamente nele. Alicerçado nele, emito minhas posições, exponho minhas ideias. Mas além de opiniões e pensamentos, guardo princípios. O respeito ao próximo, à vida, à integridade humana é um dos principais deles, inquebrantável, inarredável, sem espaço para tergiversar. Abomino a prática da tortura, por tudo de ruim que ela representa, pelo sua capacidade de desumanização, de degradação absoluta.
O que me motiva, contudo, a continuar debatendo – e me debatendo, exasperando, desgastando – não é apenas o passado, uma página a ser virada, sim, mas que deve ser completamente julgada, revelada e conhecida dos brasileiros, para que não se repita – a França pós-colaboracionismo fez isso, a Alemanha do pós-guerra faz até hoje. O que me move é o receio de que, por falta de conhecimento e por uma distorção perniciosa, os sentimentos que motivam as torturas e, por consequência, outras graves violações, ganhem corpo e alcancem corações e mentes. Vejo sinais, fagulhas desse processo em andamento, e fico receoso.
Pela crença de que alguns meios justificam os fins, passamos a tolerar determinados comportamentos: falamos da tortura no passado. E a tortura de hoje, é tolerável? Como prática corriqueira nas delegacias, como método de disciplina nas cadeias, enfim, nas diversas formas em que se apresenta? Se é, igualmente serão os extermínios de moradores de rua, de viciados, estupradores. E se a polícia não o faz, com seu braço forte, que façamos nós: nos armemos, pois essa também é uma guerra, contra essa escória humana que polui nossa sociedade, que ameaça nossa paz, nossa propriedade, nossa família. Estaremos, então, acreditando na violência como instrumento de pacificação social, caminhando, por vezes de forma inconsciente, para um tempo de intolerância que, como consequência direta, apenas agrava e tensiona a relação social. Será o tempo de Bolsonaros, de Felicianos, de capitães Nascimento, faca na caveira. Se aceitamos o desrespeito a alguns direitos humanos e garantias, não há porque não aceitarmos de outros.
Não acredito possível, como futuro “operador do direito”, estar de outro lado que não o da lei. Seja no justo cumprimento de suas premissas coercitivas e punitivas, como na efetivação dos direitos humanos e sociais nela inseridos. E a lei é instrumento de justiça, não argumento para a guerra.
As conquistas obtidas até aqui são fruto de uma construção milenar. Para que elas ocorressem, milhões de negros morreram no período da escravidão, mulheres apanharam de seus maridos e enfrentaram suas famílias, judeus foram dizimados em campos de extermínio, homossexuais sofrem preconceitos e segregação, e por aí vai…. Cada conquista histórica no campo social, de liberdade e respeito, foi demorada e extremamente cara, obtida com muito suor e sangue.
Para que não as desperdicemos, continuarei brigando, discutindo, discordando. Sempre.
Feitos esses esclarecimentos, estou à disposição para a conversa.
Abraço a todos.
Fábio Mafra Figueiredo”
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amei, realmente muito bom o tema abordado(continua a escrever maravilhosamente, meu amigo conterraneo apucaranense) abraços