Bravo! Excelente texto do MM. Dr. Bruno Machado! Principalmente com relação ao ‘pam-principiologismo’ nosso de cada dia! Amém!
Liquidez do direito…
Vivemos tempos de grande incerteza – e isso não constitui novidade alguma. São tempos líquidos, em que nenhuma de nossas certezas, convicções, tradições, costumes e instituições parecem sólidos. É tudo muito fluido, vago. Se a água tem o dom da transparência, não podemos deixar de criticá-la por se amoldar a qualquer ambiente, não resistir à pressão (logo evapora!), faltar-lhe algum conteúdo ‘substancioso’.
Bem, mas sou juiz e não físico. Assim, dou alguns exemplos do que quero dizer:
a) princípios jurídicos. Alguém já notou a quantidade de princípios jurídicos que os estudiosos do Direito assacam em livros, teses, petições, pareceres e decisões? Como disse o Profº Lênio Luiz Streck, vivemos um ‘pam-principiologismo’. É princípio para tudo, encontrável em qualquer lugar, principalmente na Constituição Federal. A cada novo livro de determinado assunto, o autor se diferencia porque acrescenta um princípio que ninguém, nesses 25 anos de CF/88, ou mais de mil do sistema jurídico romano, tinha percebido. Vivemos o perigo de um “Estado Principiológico” (expressão de grande estudioso no assunto, Humberto Ávila), em que as leis tornam-se inválidas a critério do intérprete! Concordo, isso sim, com Carlos Ari Sundfeld: princípio às vezes é preguiça. E preguiça só pode ser combatida com estudo, estudo e estudo. E cada vez mais estudo, pois cada vez mais sabemos menos.
Aliás, vê-se desse parágrafo (comprido, por sinal) que três renomados autores pátrios já se sentem incomodados com esses princípios jurídicos de pipetas. Fabricados em pipetas (e não em raciocínios). Junta um, coloca um pouco de outro, adiciona uma interpretação torta de outro texto e, ‘vois lá’ (vualá, como prefiro…): surge um novo princípio.
Para não começarmos a discussão sobre Valores… Surgirá aí, tenham certeza, um novo modismo. Os princípios serão nada perto dos Valores. Façam suas apostas.
b) ativismo judicial. Alguém sabe o que é? De repente as Cortes Superiores, e os Tribunais Regionais e os de Justiça, resolvem eles mesmos mexer em rubricas orçamentárias e distribuir medicamentos, tratamentos, próteses, perucas (sim, meninos: eu vi!) e vagas em creche. Sem critério, sem estudos, em se importar com o Direito Financeiro. Ah, mas o art. 196 da CF… Esse artigo existiu por 20 anos sem que lhe dessem essa extensão toda. E, de repente, entramos num caminho que nos colocou num verdadeiro mato-sem-cachorro. Em nome de sermos simpáticos, queridos, populares (olha o perigo!), deturpamos as noções de execuções em face do Poder Público, desrespeitamos as metas e os programas do Poder Executivo (que é eleito) e desconsideramos ações governamentais e normas orçamentárias e financeiras. Uau. Onde vamos parar? Das duas, uma: ou passam a chave do cofre para nós (que sempre nos escusamos, sob pretexto de que estamos apenas a resolver uma lide… e assim viramos um verdadeiro balcão de farmácia), ou vem aí uma medida constitucional impedindo-nos de intromissão em orçamento de Poder alheio. Aliás, o que diria a Superior Instância se, de repente, o Executivo, por um de seus muitos órgãos, entrasse com ações obrigando o Judiciário a instalar Varas, para ser mais célere? Não pode? Por que não? Pau que bate em Chico, bate em Francisco… Um perigo.
c) sanções. A sociedade paga o preço da fluidez em tudo. Já peguei tipo penal em lei administrativa estadual. Sim! Aqui no Estado de São Paulo. Afora isso, novas interpretações alargando o que não pode, como teoria do domínio do fato, a culpabilidade objetiva cada vez mais em voga. Aliás, a responsabilidade objetiva em voga: penal, administrativa, ambiental… Nessa seara, criaram riscos absurdos e ai de quem comprar um terreno, um imóvel, sem olhar muito bem suas cercanias e, note-se, seu subsolo! Porque você responde objetivamente e depois vai buscar a culpa de quem enterrou qualquer coisa ali. Isso que é certeza, não?
d) reformas processuais. Isso é capítulo à parte. Apenas para ficarmos num ponto, do CPC: desde 1994 esse código tem sido bienalmente reformado. Institutos são introduzidos, recursos cerceados, julgamentos “standardizados” são preconizados. Tudo é fórmula. Resolução de teses, não de problemas. Matar pilhas em prateleiras, e não solucionar conflitos. E, nesta sociedade do ‘fast-food’, onde o novo fica velho a cada quinze minutos (aliás, não vivemos numa sociedade, mas sim numa sAciedade, se me perdoam pelo trocadilho infame), nem mesmo esperamos um tempo necessário para que essas reformas maturem, sejam incorporadas ao dia-a-dia, produzam efeitos ao longo dos anos. Queremos tudo para ontem! O renomado profº José Carlos Barbosa Moreira já advertiu que não se fazem pesquisas sobre a eficácia dessas reformas; ao revés, mesmo sem tais pesquisas, as reformas não param.
Muito mais poderia ser escrito, não fosse o espaço pequeno e o tempo dos senhores(as), demasiado curto. É o tempo, correndo, incansável, a nos matar dia-a-dia, irrefletidamente.
É disso que tenho medo. Vamos vivendo sem parar, num turbilhão de imediatismos e respostas-prontas, de leituras de resumos, sinopses e tantas outras coleções que não aprofundam qualquer saber. Num mundo líquido, nos transformamos em pires, em copinhos, não sendo possível pôr muito conteúdo, senão transborda. O tempo não deixa termos a dimensão que merecemos: de oceanos!
O tempo, o tempo, o tempo.
Esse é outro problema: “matamos o tempo. O tempo nos enterra” (Machado de Assis).
Bruno Machado Miano, juiz de Direito em Mogi das Cruzes (SP).
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