“Inteligente e sensata a análise feita pelo Procurador do Distrito Federal, Dr. Jorge Galvão, no artigo abaixo, publicado no dia 30.08.14, no Conjur, a respeito da decisão do ‘Tribunal Nazista’, digo, da ‘reunião de meninos’, digo do Tribunal Superior Eleitoral, quando da análise do Recurso Ordinário nº 15.429, realizado no último dia 26 de agosto, quando foi rejeitado, pelo placar de 6 a 1, o pedido de registro da candidatura do José Roberto Arruda, ao cargo de Governador do Distrito Federal.
A análise é perfeita, do ponto de vista acadêmico, entretanto, deixa uma dúvida, neste caso concreto, qual seja, se é verdade que os juízes estão tendendo a seguir o clamor da maioria sociedade e ainda considerando que o candidato Arruda possui, segundo a última pesquisa, mais de 36% dos votos, ou seja, é líder absoluto, que ‘maioria’ é essa? Acho que deve ser acrescentando outro componente na análise feita, aquele ligado aos detentores do poder de plantão e a influência destes na indicação dos próprios magistrados.
Sempre é bom recordar que o ‘pau que bate em Chico é o mesmo que poderá bater em Francisco'”.
Por Jorge Octávio Lavocat Galvão ¹
I. No julgamento do Recurso Ordinário 15.429, realizado no último dia 26 de agosto, o Tribunal Superior Eleitoral rejeitou o pedido de registro da candidatura ao governo do Distrito Federal de político condenado em segunda instância por ato de improbidade administrativa em acórdão que foi prolatado após o dia 5 de julho, prazo final para os candidatos formularem pedido de registro para o pleito eleitoral de 2014.
A discussão jurídica centrou-se na interpretação do parágrafo 10º do artigo 11 da Lei 9.504/1997, que preceitua que “as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade”. Como tal preceito normativo tem aplicação restrita, disciplinando que a modificação jurídica superveniente somente surtirá efeito jurídico para afastar causas de inelegibilidade (e não o contrário), a Corte socorreu-se de uma interpretação sistemática das demais leis que regem o processo eleitoral — notadamente do parágrafo único do artigo 7º [1] e do artigo 15º [2] da Lei Complementar 64/1990 — para indeferir o pleito de registro do candidato.
Dentre os argumentos jurídicos apresentados pelos magistrados, destacou-se o voto do ministro Luiz Fux que, com muita propriedade e consistência, sustentou que o referido parágrafo 10º do artigo 11 da Lei nº. 9.504/97, ao restringir o conhecimento pela Justiça Eleitoral de causas de inelegibilidade ocorridas após a data do registro, teria ido de encontro à Constituição Federal de 1988 no ponto em que resguarda a probidade do processo político-eleitoral (artigo 14, parágrafo 9º) [3]. Para os estudiosos do Direito Constitucional, chamou a atenção o trecho em que o ministro Luiz Fux sustentou — com base na ideia de constitucionalismo democrático formulada pelos Professores Robert Post e Reva Siegel [4] — que os tribunais devem ser sensíveis aos movimentos sociais na interpretação do texto constitucional, citando, para subsidiar sua interpretação, que a Lei de Ficha Limpa originou-se de projeto de iniciativa popular que colheu cerca de 1,6 milhão de assinaturas, refletindo verdadeira demanda da sociedade civil.
Tal passagem é interessante para a doutrina constitucional por ensejar uma série de reflexões acerca do papel dos juízes nas democracias contemporâneas e do atual estágio da própria teoria constitucional, notadamente no âmbito da academia estadunidense. Com efeito, a ideia de constitucionalismo democrático, formulada pelos referidos professores da Universidade de Yale, parte do pressuposto de que a Suprema Corte, ao longo de sua trajetória histórica, tem sido sensível às demandas da sociedade, razão pela qual consideram a jurisdição constitucional uma instituição genuinamente democrática, o que contrariaria uma visão bastante difundida nos meios acadêmicos de que a Corte teria um papel contramajoritário na proteção de direitos.
Em outras palavras, há uma aparente tensão, que merece ser mais bem elucidada, entre os que entendem que as Cortes devem levar em consideração as reivindicações sociais em seus julgamentos e aqueles que defendem que os juízes devem decidir de acordo com o Direito, independentemente do sentimento da maioria da população.
II. Para uma exata compreensão das diferenças de abordagem, faz-se necessário uma reconstrução da evolução do Direito Constitucional norte-americano nas últimas décadas. Durante muito tempo, os acadêmicos dos Estados Unidos procuraram compreender o legado de Brown v. Board of Education [5], caso de 1954 no qual a Suprema Corte pôs fim à política de segregação racial nas escolas públicas, contra a vontade da maioria política da época. Fascinados com a ideia de promover transformação social por meio de interpretações constitucionais de cláusulas vagas, como o direito à igualdade e ao devido processo legal, autores liberais passaram a formular justificativas para esta nova postura hermenêutica [6].
A publicação da obra The Least Dangerous Branch, de Alexander Bickel, em 1964, é um marco nessa seara. Desde então, os teóricos do Direito Constitucional ficaram enfeitiçados pelo debate sobre a suposta função contramajoritária da Suprema Corte, termo cunhado por Bickel [7]. Como consequência, grande parte dos trabalhos desenvolvidos durante a segunda metade do século XX tentou justificar o modo como os juízes poderiam vencer o determinismo social e impor uma agenda progressista à sociedade por meio de interpretações constitucionais construtivas.
Exemplos de obras imbuídas desse espírito não faltam. Ronald Dworkin caracterizou a Corte como um fórum de princípios no qual os direitos funcionariam como trunfos contra a vontade das maiorias [8]. Frank Michelman afirmou que as decisões do tribunal constitucional poderiam ser consideradas como expressão da soberania popular em razão da forma como os argumentos jurídicos são articulados e dos resultados justos advindos desse procedimento [9]. John Hart Ely, por outro lado, advogava que a performance da Corte somente poderia ser considerada legítima caso as decisões ditas contramajoritárias tivessem como objetivo reforçar o processo político democrático [10]. Nessas obras, as elaborações teóricas de filósofos de teoria política e moral serviam de base para elaboração das justificativas e princípios acerca da legitimidade democrática da jurisdição constitucional e do papel dos juízes.
A situação muda na academia norte-americana quando vários juízes liberais são substituídos por magistrados conservadores indicados pelo Partido Republicano para a Suprema Corte a partir da década de 1980 [11]. Decisões progressistas passaram a ser cada vez mais raras, enquanto que temas caros para os políticos de direita passaram a fazer parte da agenda do Tribunal [12]. A decisão em Bush v. Gore [13], que, por cinco votos a quatro, considerou o candidato republicano como vencedor das eleições presidenciais de 2000, foi o clímax da desconfiança com relação ao Poder Judiciário, já que todos os magistrados ditos conservadores votaram a favor de George W. Bush. Nenhuma teoria constitucional baseada em princípios filosóficos acerca do papel do juiz conseguia justificar adequadamente o modo como as questões judiciais passaram a ser decididas nos Estados Unidos [14]. A função contramajoritária da Corte e a ideia de que os juízes estariam insulados da política ordinária estavam em xeque.
A desilusão tomou conta dos acadêmicos liberais. Como consequência, a última década foi marcada por um profundo ceticismo quanto ao controle jurisdicional de constitucionalidade. Vários renomados liberais começaram a defender abertamente o fim da jurisdição constitucional. Mark Tushnet, por exemplo, advogou pela edição de uma emenda constitucional visando proibir a declaração de inconstitucionalidade das leis pelos tribunais [15]. Jeremy Waldron escancarou as inconsistências filosóficas das principais teorias constitucionais quando elas consideram que o ponto de vista dos juízes seria de algum modo privilegiado para resolver os desacordos morais que permeiam as sociedades democráticas contemporâneas [16]. Larry Kramer defendeu que o significado das cláusulas constitucionais fosse determinado pelo povo no exercício de seu poder político soberano, conclamando pelo reestabelecimento de um constitucionalismo popular [17].
Mais recentemente, contudo, iniciou-se uma nova perspectiva no Direito Constitucional, em que alguns autores ditos progressistas passaram a adotar outra estratégia, voltada para a compreensão do modo pelo qual certas questões ganham a estatura de questão constitucional e entram para a agenda da Corte. Abandonando as sofisticadas teses filosóficas de outrora e ancorados em estudos de história e ciência política, constitucionalistas como Jack Balkin [18], Reva Siegel [19] e Robert Post [20] procuram entender como a compreensão dos compromissos constitucionais evolui ao longo do tempo na sociedade e se traduz em Direito Constitucional pelos juízes, sem romantizar o papel da Corte. Foca-se, portanto, no modo como certos atores políticos – como os partidos políticos, os movimentos sociais e os grupos de pressão – influenciam a visão dos cidadãos (inclusive dos juízes) sobre o significado da Constituição.
Dito de outra forma, esses autores, de maneira geral, diagnosticam o processo mediante o qual os diversos atores políticos formulam e disseminam determinadas demandas políticas na linguagem do Direito Constitucional e passam a influenciar as decisões das Cortes. O termo constitucionalismo democrático, utilizado por Robert Post e Reva Siegel, refere-se exatamente a essa capacidade dos juízes de ajustarem suas interpretações constitucionais às demandas políticas ao longo da história.
III. Há uma clara diferença de abordagem: enquanto a primeira geração de liberais — como Dworkin e Hart Ely — buscava formular uma teoria da decisão judicial de maneira a influenciar o modo como os juízes decidem os casos concretos; o projeto de Post, Balkin e Siegel tem como escopo explicar o modo como os juízes são influenciados pelos partidos políticos, movimentos sociais e grupos de pressão em suas interpretações da Constituição. Ou seja, os primeiros autores possuem uma nítida pretensão normativa, enquanto que a preocupação do segundo grupo de acadêmicos é a de descrever a engrenagem política na qual as Cortes estão inseridas. Obviamente que não se está afirmando que essas novas teorias sejam moralmente neutras. Ao descreverem o modo como as decisões judiciais são gestadas, tais autores têm a pretensão normativa de explicar como interpretações constitucionais legítimas são construídas na inter-relação entre os diversos atores políticos e os tribunais. Com isso intencionam ajudar os liberais a transformarem suas reivindicações em direitos reconhecidos pela Suprema Corte.
Vale perceber que as duas perspectivas de compreensão da jurisdição constitucional não são necessariamente antagônicas: os juízes devem dar a melhor interpretação jurídica possível aos casos constitucionais, ainda que contrariem o interesse das maiorias, conforme propõem as teorias normativas. O que o constitucionalismo democrático evidencia, por seu turno, é que historicamente os juízes acabam adotando concepções jurídicas favoráveis às demandas sociais em razão da influência cultural dos diversos atores políticos.
O que não parece adequado é utilizar as constatações do constitucionalismo democrático (de que o Poder Judiciário normalmente é sensível às demandas políticas) como parâmetro normativo das decisões judiciais (no sentido de que o Poder Judiciário deve ser sensível às demandas políticas). Os juízes não devem julgar de acordo com a opinião pública, mas com base em critérios jurídicos. Como bem adverte Jack Balkin, “em nenhum momento está se insinuando que os juízes possuem a obrigação ou a responsabilidade de ‘acompanhar as mudanças’ ou ‘refletir novos valores’ ao invés de fazer o que se supõe que eles façam, que é interpretar e aplicar o Direito da melhor maneira possível” [21]. Caso se admitisse tal confusão teórica, estaríamos abrindo mão da própria normatividade do Direito, trocando-a por percepções subjetivas dos magistrados nem sempre adequadas do que seja a vontade da sociedade em determinado momento histórico.
Tais reflexões explicam porque nós, juristas, tanto apreciamos decisões bem fundamentadas no Direito vigente, baseadas em argumentos de princípio em contraposição a argumentos de política, como fez o próprio ministro Luiz Fux no restante de seu voto, em que procurou dar a melhor interpretação possível do Direito Constitucional-eleitoral ao caso concreto.
–
¹ Jorge Octávio Lavocat Galvão é procurador do Distrito Federal, mestre em Direito pela New York University e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo.
Muito bom. Isso me lembra o voto do ministro do STF (não lembro o nome) sobre os embargos infringentes no caso do Mensalão (ação Penal 470). E também o livro Levando os Direitos a Sério de Ronald Dworkin