Sem Pena, de Eugênio Puppo
Crítica de Adriano Garrett
Não é preciso olhar muito longe para encontrarmos exemplos de governantes que veem a repressão desenfreada como única forma de combate à criminalidade, e que contam quase sempre com a anuência de boa parte da população. Em Sem Pena, documentário de Eugênio Puppo que abriu a mostra competitiva do 47º Festival de Brasília, os reflexos nada animadores desta lógica no funcionamento do Judiciário e do sistema prisional brasileiro são expostos e colocados em xeque.
Em sua primeira cena, na qual uma câmera fixa colocada no elevador de um prédio do Judiciário mostra as portas se abrindo e fechando (como numa prisão), o filme já deixa clara a sua intenção: trazer para a superfície, para a sociedade em geral, um problema que hoje permanece intocado e sem solução no gabinete de poucos.
A partir de entrevistas com fontes que se relacionam de alguma forma ao tema (como presidiários, ex-detentos, ex-policiais, membros do Judiciário, especialistas em segurança pública), o filme traça o perfil de um sistema que, como faz questão de frisar desde a sua primeira entrevista, ele julga como um completo fracasso.
A escolha por não mostrar o rosto nem o nome dos entrevistados pode ser vista como uma maneira de evitar um pré-julgamento das falas, tanto pela aparência física, quanto pela sugestão de autoridade inerente às nomenclaturas. Assim, o filme ilustra deus depoimentos com imagens que se relacionam de alguma maneira com os assuntos tratados.
Há bons momentos na junção entre imagem e depoimentos. As pilhas de arquivos de anônimos são particularizadas quando ouvimos pessoas que já estiveram no sistema prisional; a imagem de uma Ferrari sendo olhada por jovens moradores de rua em frente a uma faculdade de Direito tem muita força; e assim por diante. De modo geral, porém, o esquematismo limita o potencial cinematográfico da obra.
A lógica visual paradoxal que guia o filme, que pretende tornar visíveis e palpáveis o drama de pessoas e a discussão de temas quase sempre ignorados, só é rompida durante um julgamento em que o rosto de juiz, advogado e promotora são mostrados. Aquelas pessoas são o elo visível de um sistema que, como o próprio filme já mostrara, é muito mais complexo.
Esta cena levanta outras questões que caberiam a vários outros momentos do trabalho: o que ela acrescenta à discussão proposta pelo filme, além da simples concordância com tudo aquilo que havia sido apresentado até então? De que modo a construção narrativa do filme dá espaço para uma reflexão daqueles que não são iniciados no tema e possuem uma visão política distinta da retratada pela obra? Qual contraposição é possível fazer às teses defendidas pelo filme?
A cena final, na qual o diretor parece querer reiterar o papel do espectador e da sociedade neste sistema – estamos todos dentro daquele camburão – é um bom exemplo de defesa cinematográfica das ideias que permeiam a obra. No entanto, apesar da inegável relevância de sua discussão, Sem Pena tem a sua força e a sua limitação vinculadas ao peso do material que mostra.