4ª RESENHA: ENTREGA: 01/09/2015
A Guerra Fiscal está morta. Vida longa à Guerra Fiscal!
Por Aldo de Paula Junior, publicado em 13.05.15 *
O Supremo Tribunal Federal julgou mais um caso de Guerra Fiscal de ICMS na sessão de 11/03/2015 (ADI 4481/PR, Rel. Min. Roberto Barroso). Como em inúmeros outros, o benefício fiscal foi declarado inconstitucional pelo Plenário porque concedido unilateralmente pelo Estado sem autorização prévia em convênio elaborado no âmbito do Confaz. Até aqui, nada de novo. Mudam os atores, mas o fundamento e o objeto são os mesmos e a jurisprudência do Tribunal é pacífica pela inconstitucionalidade destes benefícios unilaterais.
A novidade e importância da decisão estão na modulação dos efeitos no tempo desta inconstitucionalidade. O Tribunal entendeu, pela primeira vez em matéria de Guerra Fiscal, que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade atingiriam apenas os fatos futuros (da data do julgamento e não da publicação, o que também é uma novidade).
A modulação de efeitos é polêmica em nosso sistema jurídico porque colide com a teoria da nulidade das normas produzidas em desacordo com a Constituição, base teórica do nosso controle jurisdicional de constitucionalidade (“A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si.” ADI nº 2/DF. Rel. Min. Paulo Brossard. STF. Pleno. DJU 21/11/1997). Segundo esta teoria, o ato (normativo) produzido em desacordo com a Constituição contém um vício insanável e é nulo desde a origem, por isso que o Tribunal, ao decidir, apenas declara o vício existente e retira a norma do ordenamento desde sua edição (sempre foi nula). Os efeitos são, neste cenário, retroativos (ex tunc).
A teoria da nulidade diminui a importância da vigência e eficácia da norma produzida pelo legislador sobre a realidade. Tais efeitos também seriam inconstitucionais e deveriam ser desconstituídos desde a origem.
O problema surge quando os efeitos da norma sobre a realidade são de impossível desconstituição ou de reversão mais prejudicial à sociedade (ou aos valores constitucionais) que a sua manutenção. Neste caso, prevaleceria a vigência e eficácia da norma ainda que produzida em desacordo com a Constituição (porque era obrigatória) e a decisão do Tribunal seria de inconstitucionalidade apenas para as situações futuras.
Para Hans Kelsen, um dos artífices do controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade, a decisão de inconstitucionalidade deveria, como regra, produzir efeitos para o futuro exatamente porque a lei era obrigatória e todos (cidadãos e autoridades públicas) deveriam aplicar seus dispositivos aos casos concretos. Segundo ele, “a questão da regularidade ou da irregularidade dos atos das autoridades não deve ser decidida pura e simplesmente pelo cidadão ou pelo órgão estatal a que estes se dirigem pedindo obediência, mas pela própria autoridade que produziu o ato cuja regularidade é contestada, ou por uma outra autoridade cuja decisão é provocada por meio de um procedimento determinado.” (Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141).
Em alguma medida estas teorias (nulidade x anulabilidade) têm se aproximado na prática do controle de constitucionalidade nos diferentes países que a adotam (cf Rui Medeiros. A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade de lei. Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999. P. 535) porque os efeitos da decisão de inconstitucionalidade sobre a realidade social e econômica não podem ser desconsiderados.
O próprio Supremo Tribunal Federal tem aplicado a modulação de efeitos desde antes da edição do art. 27 da Lei Federal nº 9.868/1998 [1] que a prevê expressamente para os casos em que estiverem em jogo razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social e, embora sem muito debate a respeito, já aplicou a técnica em matéria tributária (RREE 560626/RS, 556664/RS, 559882/RS rel. Min. Gilmar Mendes, 11 e 12.6.2008, SV nº 8/STJ, inconstitucionalidade dos prazos de decadência e prescrição previstos na Lei Federal nº 8.212/1991).
No caso concreto, o Ministro Relator Luis Barroso ressaltou no julgamento que a lei vigorou por 8 (oito) anos; que durante tal período os contribuintes cumpriram seus dispositivos que eram presumidamente constitucionais; e, portanto, eventual desconstituição dos efeitos da norma durante este período poderia acarretar impacto injusto para as partes privadas que cumpriram a lei em desrespeito à boa-fé que deve regular as relações entre os cidadãos e o Estado.
O Ministro Marco Aurélio, por sua vez, rechaçou a modulação de efeitos no caso concreto por entender que não havia quebra de boa-fé ou confiança do cidadão perante o Estado porque sabiam que a norma seria declarada inconstitucional porque a jurisprudência do Supremo era firme pela inconstitucionalidade do benefício fiscal de ICMS sem amparo em Convênio e que tal modulação seria a chancela, pelo Tribunal, do desrespeito à Constituição.
Ainda segundo o Ministro Marco Aurélio, a decisão não estimula “os cidadãos em geral a respeitarem o arcabouço normativo constitucional em vigor. Ao contrário, em quadra muito estranha, nós incentivamos a haver o desrespeito e, posteriormente, ter-se o famoso jeitinho brasileiro dando-se o dito pelo não dito, o certo pelo errado.”
Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, e a matéria seja extremamente polêmica, depreende-se da decisão da maioria que o Tribunal deu prevalência à vigência e eficácia da norma do benefício fiscal de ICMS produzida pelo Estado em relação aos cidadãos (de seu território e de outros Estados), ainda que tal medida tenha sido produzida em confronto com as regras constitucionais.
Com esta decisão, mantida a constitucionalidade da norma até sua declaração de inconstitucionalidade, tem-se que os contribuintes que alocaram seus investimentos àquele Estado terão resguardados seus direitos relativos à fruição daquele benefício fiscal até a data da decisão.
Os demais Estados, por sua vez, não poderão recusar a vigência e eficácia da norma do benefício fiscal naquele período e tampouco glosar os créditos de ICMS apoiados em seus dispositivos.
Esta última consequência da decisão não foi expressamente discutida, mas é decorrência lógica da modulação e atinge diretamente diversos outros casos em andamento pelo país (vide tema 490 da Repercussão Geral – Creditamento de ICMS incidente em operação oriunda de outro ente federado que concede, unilateralmente, benefício fiscal. RE nº 628075).
Por fim, destaca-se que a solução foi construída em um julgamento de cerca de cinquenta minutos em uma ação direta de inconstitucionalidade contra benefício fiscal no âmbito da Guerra dos Portos que, conforme apontado pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), autora da ação, não trouxe desenvolvimento para a indústria local ou emprego para o Estado, ao contrário, favorecia as importações em detrimento da indústria nacional.
Este ponto é interessante porque o tema é objeto de Proposta de Súmula Vinculante nº 69/2012 (PSV 69) que gerou amplos debates entre os Estados e os contribuintes atingidos pelos reflexos dos benefícios fiscais unilaterais, incluída a discussão sobre a modulação dos efeitos da Súmula Vinculante. Pela proposta, “qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional”.
Como a matéria foi decidida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal e o contexto normativo e fático é o mesmo dos demais casos sobre Guerra Fiscal de ICMS – aliás, é mais grave que os casos de benefícios fiscais de ICMS concedidos pelo Estado para estímulo à produção e ao emprego em seu território -, é legítimo esperar, por exigência de isonomia e coerência do Sistema Normativo, que a solução seja replicada para os demais casos em andamento de benefícios fiscais concedidos pelos Estados sem amparo em Convênio.
Com esta uniformização encerra-se um capítulo da tumultuada relação entre os entes federativos e destes com seus contribuintes. Entretanto, a desigualdade regional e a ausência de política nacional de desenvolvimento para os Estados menos favorecidos permanecem e certamente a Guerra Fiscal trará novos e importantes problemas para o Supremo. O principal deles decorrente da lógica utilitarista adotada para este julgamento. O que impedirá os Estados de editarem novos benefícios inconstitucionais?
[1] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
* Aldo de Paula Junior é Doutor e Mestre em Direito Tributário, professor da Pós Graduação Lato Senso da FGV Direito SP e sócio de Azevedo Sette Advogados.
Entregue no dia 31/08/2015, conforme abaixo: