Joaquim Barbosa é a grande obra ética de Lula
Joaquim Barbosa é um ser humano de rara imperfeição. Na breve passagem pelo STF, seus 10% de qualidades deram aos seus 90% de defeitos uma fabulosa reputação. Ele desce ao verbete da enciclopédia como a grande realização ética da Era Lula. No papel de juiz, o principal mérito de Barbosa foi o de ter ateado em Lula uma enorme aversão à sua irascícel figura.
Darwin mostrou como o acaso é importante na evolução das espécies. Lula provou que o fortuito às vezes comanda também os movimentos civilizatórios. Ficou demonstrado que o acaso pode influir nos destinos da República tanto quanto um acidente genético pode condenar uma certa linhagem biológica ao extermínio ou à sobrevivência.
Barbosa foi o primeiro dos oito ministros que Lula indicou para o STF. Chegou à Suprema Corte porque o então presidente meteu na cabeça que tinha de indicar um negro. Acionou seu ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Que encontrou um negro de mostruário —origem pobre, eleitor de Lula e dono de boa formação acadêmica. Consumada a escolha, o computador do STF completou o serviço.
Numa seleção aleatória, a máquina escolheu o preferido de Lula para a função de relator do processo do mensalão. E Barbosa revelou algo que seu patrono não suspeitara: sob a pele negra, havia um magistrado independente. Desses que não costumam pagar o privilégio de uma indicação com a própria consciência. A criatura converteu-se em algoz do partido do criador.
O julgamento do mensalão é obra coletiva. Mas não há quem ignore: foi Barbosa quem levou os acusados à marca do pênalti. Subdividido em capítulos, seu relatório tornou o escândalo simples como um jogo de futebol. No auge da partida, Barbosa revezou-se nos papeis de artilheiro e zagueiro. Ora chutava em gol ora entrava como um Tonhão de time de várzea no calcanhar dos que ameaçavam seu domínio na grande área.
Mesmo quem acredita que tudo já está escrito nas estrelas, se surpreende ao imaginar o que poderia ter acontecido se o encadeamento de escolhas arbitrárias não tivesse conspirado a favor de Barbosa. Pense bem: e “se”…
Se o Lula não tivesse encomendado um negro, o Thomaz Bastos teria escolhido qualquer outro nome; mas se o Joaquim Barbosa não tivesse assumido uma poltrona no STF, o José Dirceu não estaria, agora, fazendo discursos contra ele na cadeia.
Nunca é demais lembrar que, se tivesse prevalecido o plano original, José Dirceu permaneceria na Casa Civil até o final dos dois reinados de Lula. Se isso tivesse ocorrido, o PAC provavelmente teria um pai, não a mãe que todos conhecem. E a República talvez fosse presidida, hoje, pelo impensável. Que estaria em plena campanha à reeleição.
A aposentadoria era uma folha distante no calendário de Joaquim Barbosa. Só chegaria em 2024, quando o ministro completaria 70 anos. A despeito das complicações na coluna, ele poderia permanecer em campo. Mas a perspectiva de passar a presidência do Supremo para Ricardo Lewandowski em novembro parecia doer-lhe mais do que as vértebras.
Mal comparando, Barbosa preferiu, a duas semanas da Copa, deixar a grande área do STF como uma espécie de Pelé. Decerto avaliou que, depois do mensalão, participar de um colegiado presidido por Lewandowski seria como jogar num time da segunda divisão.
O ministro executou sua saída com método. Transferiu José Genoino da reclusão domiciliar para o xilindró. Revogou as autorizações para que os mensalerios do semiaberto trabalhassem fora da cadeia. Negou o benefício a José Dirceu. Após virar todas as chaves, informou que vai pendurar a toga em junho.
Num país em que ninguém costumava pagar por coisa nenhuma acima de um certo nível de poder e renda, as 24 condenações do mensalão têm, para Barbosa, um sabor de mil gols. Ironia suprema: Lula, principal responsável pela armação da jogada, chama a goleada de “farsa”. Com isso, fica impedido de celebrar o único feito do seu governo no campo da ética.
Por Josias de Souza