Aos 24 anos, Corcioli fez concurso para a defensoria pública e, aos 26, para a magistratura.
Quando ainda era defensor público, Roberto Corcioli se deparou com um desses casos em que a Justiça não se escreve preto no branco – mas, antes, em tons de cinza. Foi em 2007, quando lhe coube defender dois irmãos de uma família de baixa renda, sem condições de custear um advogado, que mataram o irmão mais velho a porretadas.
Do lado da acusação estava Edilson Mougenot Bonfim, uma lenda da promotoria, que atuou no caso do maníaco do parque. Os irmãos atacaram a vítima para defender a mãe dos três, alvo de agressões e ameaças constantes, inclusive relatadas à polícia. Quando ela entrou na sala do 1º Tribunal do Júri, em São Paulo, curvada pela idade e pela tragédia familiar, ficou claro – até para a promotoria – que a prisão dos assassinos não seria o melhor desfecho para o julgamento. Nesse caso, prevaleceu a defesa de Corcioli pela absolvição dos réus: “Sustentei que, apesar de se tratar de uma situação absolutamente lamentável, não seria justo encarcerar os dois irmãos, deixando sozinha a própria mãe, para além do sofrimento que experimentaram e continuavam experimentando”.
Em 2009, Roberto Luiz Corcioli Filho, de 31 anos, trocou a defensoria pública pelo posto de juiz auxiliar da Comarca da Capital. Hoje, é ele quem recorre ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o órgão fiscalizador do Poder Judiciário, para reparar o que considera uma injustiça contra si mesmo. Desde meados de 2013, está impedido de atuar nas varas criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Seu afastamento se deu em junho de 2013 a pedido do então corregedor, desembargador José Renato Nalini – hoje alçado à presidência da corte -, após uma representação assinada por 17 promotores de Justiça insatisfeitos com o teor de suas decisões. Para os promotores, Corcioli era um juiz que soltava muito e prendia pouco.
Para surpresa da promotoria paulista, todos os 25 desembargadores que integram a cúpula do tribunal decidiram pelo arquivamento da queixa contra Corcioli – ainda que um deles tenha deixado claras suas ressalvas: “Ele não é o juiz dos meus sonhos, mas tinha o direito de decidir conforme sua consciência”. Apesar da unanimidade, a presidência do TJ-SP jamais voltou a designar Corcioli para atuar nas varas criminais e o manteve alocado em outras áreas, como a cível e a de família.
Roberto Corcioli é o que se chama, no jargão do direito, de juiz garantista. Aquele que busca “minimizar a violência e maximizar a liberdade” ou conter a “função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos”, segundo a definição do jurista italiano Luigi Ferrajoli em Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal (Editora Revista dos Tribunais, 2002). “Não sou contra a punição, mas acho que ela deve se manter em parâmetros razoáveis”, explica Corcioli. “O homicídio que mais apavora o cidadão médio, por exemplo, aquele cometido por um assaltante – o latrocínio -, ocorre em porcentuais ínfimos. Na imensa maioria, mata-se por ciúme, no trânsito, em conflitos de família ou em briga de vizinhos.” É por essa razão, argumenta Corcioli, que a ideia de uma população “armada contra a bandidagem” só serve para inflar a violência, não reduzi-la.
Nessa mesma escala de valores, o juiz considera que o encarceramento de menores de idade em presídios muitas vezes dominados por facções criminosas também seria ineficaz. E com resultado pouco efetivo na proteção da sociedade, uma vez que menores de 16 a 18 anos são responsáveis por apenas 0,9% do total de crimes praticados do Brasil – 0,5%, se considerados só homicídios e tentativas de homicídio -, segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública.
Sua visão não coaduna com o cenário prisional brasileiro. O país assumiu no ano passado a terceira posição no ranking dos que mais prendem no mundo, com uma população carcerária de 715 mil, de acordo com levantamento do CNJ – atrás apenas dos EUA (2,2 milhões de presos) e da China (1,7 milhão). E com risco de assumir a liderança, em caso de aprovação da redução da maioridade penal.
Não é só contra a cultura punitivista que as posições do juiz Corcioli se chocam. Em setembro, durante audiência pública em Brasília sobre os impactos da regulamentação da maconha no Judiciário, ele argumentou que “o proibicionismo não tem ajudado a conscientizar as pessoas a respeito do uso nocivo das drogas, lícitas ou ilícitas”. E evocou a liberdade individual ao discordar da fala do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), para quem “a sociedade não nos absolverá se não buscarmos um mundo sem drogas”. “É desejável um mundo sem drogas, senador?”, provocou, diante de uma explosão de vaias do público presente: “Pensar em um mundo sem drogas é pensar em um mundo totalitário”, concluiu Corcioli. Vale lembrar que, poucos anos antes, em 2011, a presidente Dilma Rousseff demitiu sumariamente o então secretário nacional antidrogas, Pedro Abramovay, por ter se dito favorável à aplicação de penas alternativas à prisão para pequenos traficantes, os jovens “aviões” do tráfico.
O histórico de casos julgados por Corcioli antes de seu afastamento da vara criminal dá uma ideia de como suas convicções se expressam na prática. Em setembro de 2012, o juiz recusou pedido de prisão e decidiu por pena alternativa para um homem acusado de roubar R$ 6. Em fevereiro de 2015 (quando, já afastado, caiu na lista de sorteio do plantão na vara criminal), aludiu ao “princípio da insignificância” para absolver um homem que tentou furtar dois salames em um mercado. Em janeiro de 2013, ao julgar os réus de uma tentativa de assalto que virou troca de tiros após a reação de um policial à paisana, resultando na morte de uma pessoa por bala perdida, condenou-os pelo primeiro crime, mas não lhes imputou latrocínio. Entretanto, em fevereiro de 2010, quando lhe caiu às mãos outro latrocínio, este, deliberado, considerou ter havido “desmedida brutalidade” e não hesitou em sentenciar o acusado a 30 anos de reclusão. “A pena de prisão cabe nos casos que envolvam violência, um certo perfil de criminalidade ou grave ameaça à coesão social, o que inclui certos casos de corrupção e crimes de colarinho-branco, pela sordidez e pelos danos que causam”, explica o juiz.
Nascido em Garça, município com pouco mais de 44 mil habitantes no interior paulista, Corcioli não vem de uma família tradicionalmente ligada ao direito. Filho de um funcionário do Banco do Brasil que trabalhou a vida inteira em uma única agência e de uma professora do ensino fundamental, estudou em escola pública e só se mudou para a capital para cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).
Formado, trabalhou em escritórios de direito tributário e comercial antes de passar no concurso para a defensoria pública de São Paulo, com apenas 24 anos. Defensor, atuou no 1º Tribunal do Júri da Capital e no Núcleo de Taguatinga, no Distrito Federal. “É uma carreira fantástica, mas muitas vezes você se dedica, monta uma peça concatenada de defesa para o juiz nem sequer considerar seus argumentos na decisão.” Aos 26 anos, prestou concurso para a magistratura. Na véspera do exame, um enfarte fulminante levou seu pai. “Fiz a prova anestesiado, nem sequer me lembro das perguntas, só pensava que o grande sonho do meu pai era ter um filho juiz.” Sonho que se realiza, embora recheado de percalços.
Em fevereiro de 2014, Corcioli recorreu ao CNJ. No pedido, argumentou que a ausência de normas objetivas e impessoais para a designação de juízes auxiliares nas diferentes varas sujeita o magistrado a uma espécie de autocensura: ou ele julga de acordo com orientação geral da cúpula – mais sujeita, por questões orçamentárias ou políticas, às pressões do governante da vez – ou corre o risco de ser escanteado. Seria, no seu ponto de vista, contrária à meritocracia e estimularia uma espécie de nepotismo velado na corte. “É um sistema que estimula a subserviência, e a subserviência é incompatível com a figura do juiz”, revolta-se.
O pleito ganhou o apoio de entidades como a Associação Juízes para a Democracia (AJD), a Associação Paulista de Defensores Públicos (Apadep) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). E, em junho de 2014, os conselheiros do CNJ decidiram, por 8 a 6 (com uma ausência), não só pelo retorno do juiz à vara criminal como também por uma regulamentação nacional para as designações de juízes.
No entanto, o TJ-SP recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), e o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar suspendendo a decisão do CNJ. Fato que surpreendeu pela reputação de garantista do próprio Lewandowski – um antagonista obstinado do colega Joaquim Barbosa na defesa de penas mais proporcionais para os réus do mensalão. Há quem mencione, nos bastidores do mundo jurídico, que teriam pesado na decisão o fato de o atual presidente do STF ter sido desembargador do TJ-SP e a relação de amizade que mantém com o presidente Nalini – de quem prefaciou o livro A Rebelião da Toga (Millennium, 2008). Questionado pelo Aliás, Lewandowski encaminhou, por intermédio de sua assessoria, o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura, que veda o juiz de “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento”.
Já o presidente do TJ-SP não se furtou a responder à reportagem. “Segundo me recordo, os promotores que atuavam na Barra Funda, com o seu corregedor-geral, trouxeram informações de que o magistrado julgava em desacordo com a orientação jurisprudencial predominante”, disse José Renato Nalini. Para o presidente do TJ-SP, o afastamento de Corcioli não fere o princípio da independência do magistrado. “É saudável para o juiz atuar onde ele é necessário. São 2.400 magistrados em São Paulo e os juízes auxiliares existem para ajudar onde for preciso. Ele não é titular de vara. Enquanto não for promovido, o ideal é conhecer todas as especialidades para então verificar aquela de sua preferência”, argumentou Nalini, sem deixar de sugerir que “há previsão de afastamento por motivo disciplinar, assegurada a plenitude de defesa e o inafastável contraditório”.
Para o professor de direito processual da USP, Gustavo Ivahy Badaró, autor de uma tese de livre docência sobre o tema (A Garantia do Juiz Natural no Processo Penal), o poder da presidência do tribunal de designar livremente os magistrados põe em risco uma garantia constitucional da magistratura: o princípio da “inamovibilidade” do juiz, que não pode ser transferido exceto em situações especiais. Por essa razão, Badaró produziu parecer favorável à demanda de Corcioli no CNJ. O professor de direito constitucional Oscar Vilhena, diretor da FGV Direito/SP, considera que o CNJ acerta ao exigir dos tribunais o estabelecimento de regras claras, que evitariam que se pudesse “escolher juízes auxiliares para determinadas varas em decorrência de eventual pressão do Executivo, por exemplo”. O jurista Dalmo Dallari é ainda mais direto: “Infelizmente já ocorreram casos de designação de juízes auxiliares sob influência de outros interesses que não a melhor qualificação dos escolhidos”.
Quando o STF vai bater o martelo sobre a polêmica, ninguém sabe. O mandado de segurança 33078/DF está nas mãos da ministra Rosa Weber, “sem previsão para julgamento”, como informa sua assessoria. Enquanto isso, Roberto Corcioli prossegue sua rotina de audiências no Fórum Central Cível, para o qual se desloca de ônibus ou de bicicleta. Perguntado se acha que seu périplo, que já dura um ano e oito meses, pelos labirintos da Justiça brasileira se tornou uma missão, nega com ênfase. “Eu me espanto é com o espanto de alguns colegas, que me consideram um camicase por querer levar isso até o fim.”
Fonte: Por Ivan Marsiglia – O Estado de S. Paulo. Foto: Tiago Queiroz/ Estadão – 22/02/2015