Excelente artigo, publicado no ConJur, que trata de assunto recentmente discutido na cadeira de Direito Processual Penal III…
Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa*
As máximas populares são lugares comuns reiterados no dia-a-dia e que formam, querendo ou não, o aparato cognitivo da população, dentre eles os metidos no processo penal. Não se pode desprezar ainda o peso da culpa judaico-cristã e do questionamento bíblico “por que calas, se és inocente?”. Por mais que o acusado tenha o direito de permanecer em silêncio, não raro sublinha-se, no contexto da fundamentação das decisões judiciais, que o acusado não quis apresentar sua versão. Isso também é sintoma da ‘frustração de expectativas’, ou seja, o juiz, como ser-no-mundo, é alimentado pela ‘curiosidade’ e movido pelo ‘desejo’, portanto, o silêncio do acusado é um tapa no conjunto de expectativas criadas pelo julgador. O exercício de seu silêncio é tomado como uma confissão silenciosa da culpa. A Constituição da República garante o direito ao silêncio (artigo 5º, inciso LXIII), na linha do devido processo legal substancial, afinal ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas o exercício do direito é mais complexo.
Compreendendo o processo como jogo de informação, a atitude do acusado em permanecer em silêncio ainda encontra forte resistência dos agentes processuais que muitas vezes entendem o exercício do direito como uma forma de desrespeito. Muitos magistrados e membros do Ministério Público tomam o exercício do direito como uma forma de depreciação com suas funções, uma forma “indolente” ou “inatural” de comportamento, quando não invocam, ainda, o não recepcionado artigo 186 do Código de Processo Penal conforme se infere: “O juiz criminal não se pode permitir nenhuma ingenuidade no exercício de suas funções (…) O silêncio do réu não implica em confissão, mas é significativa a atitude de quem, preso e acusado injustamente de crime gravíssimo, prefere manter-se calado, pois a reação natural de qualquer pessoa inocente é proclamar veementemente a sua inocência, esteja onde estiver.” (TRF-4, Ap. Criminal 6.656, julgado em 12/11/2001).
Entre o dizer e o não dizer, aponta Eni Orlandi, existe um intrincando processo de atribuição de sentido, pelo qual as próprias palavras transpiram o sentido, como se do silêncio se deduzisse, imaginariamente, o sentido (que se quiser). O imaginário aqui preenche o sentido que não se deu a partir da tática silenciosa. Daí os riscos de não dizer. Não raro, se pôr em silêncio gera uma dimensão implícita do que se poderia dizer. Daí a importância de se estudar os efeitos do silêncio no processo penal. Eni Orlandi sustenta que “há um sentido no silêncio. O silêncio foi relegado a uma posição secundária, como excrescência, como o ‘resto’ da linguagem. Nosso trabalho o erige em fator essencial como condição do significar.”[1] Por mais que a Análise do Discurso pontue uma leitura ideológica e histórica do imaginário, diferentemente da articulação de Lacan, mesmo assim, os efeitos da evidência cognitiva decorrentes do preenchimento subjetivo do silêncio deslizam para o contato entre as verdades sabidas, singelas e facilitadoras da decisão penal. Os cúmulos de sentido, as palavras vedetes, os mantras enunciados no ambiente forense, encontram solo fértil no silêncio do acusado. Opera-se na lógica da costura imaginária e ideológica do sentido ao silêncio. A ordem ao discurso possui como pano de fundo o ponto de vista ideológico, tomado de assalto pela postura inquisitória de descoberta da verdade real, ainda existente, não fosse a sua matreira ingenuidade, na postura do senso comum teórico (Warat) do Processo Penal.
O silêncio articula um convite ao vazio a ser preenchido. Ao mesmo tempo em que preenche a narrativa, autoriza seu preenchimento, dada a confusão entre o vazio e o nada. Daí o paradoxo e os riscos de seu exercício. Com o silêncio as coordenadas do sentido migram, sendo necessário compreender autenticamente a noção de sentido para que não se corra o risco de ser engolfado pela postura paranoica (Franco Cordero e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), de se saber o que o silêncio diz. Deixar que o silêncio opere no processo penal, especialmente no lugar do acusado, precisa, assim, ser problematizado. Não é uma simples tática processual. Pode gerar consequências avassaladoras. Isso porque no jogo da linguagem e das imagens que evocam, como metáfora, no contexto do processo penal, a alucinação probatória (Rui Cunha Martins), pode gerar consequências confirmatórias pela máxima não dita nos processos penais de que “quem cala consente.”
Helen Hartmann pontua que “entender o silêncio como uma opção indolente ou inatural por não apresentar uma versão dos fatos — ponderação que vem a lume quando do convencimento do magistrado — é valorá-lo tal qual a uma confissão. Quando o magistrado entende que todo o inocente necessariamente verbaliza sua versão, condena aquele que se cala a uma confissão velada. O silêncio não deve pesar ao convencimento porque nada é. Do contrário, trata-se de torturar racional e psiquicamente, por meio das implicações do exercício do direito ao silêncio.”[2] Daí a importância da jogada processual do interrogatório.
O processo penal é um complexo ritual de reconstituição de um fato passado, através do qual as partes buscam a ‘captura psíquica do julgador’. Na dinâmica do ‘procedere’, como explica James Goldschmidt, surgem expectativas, perspectivas, chances, cargas e liberação de cargas. O não aproveitamento dessas chances (especialmente na instrução) gera a perda de uma oportunidade de liberação da carga, gerando a perspectiva de um provimento final desfavorável. Portanto, quem melhor aproveitar as chances para se liberar das cargas probatórias, aumenta a expectativa de uma sentença favorável; em sentido inverso, a não liberação das cargas gera a perspectiva de uma sentença desfavorável. Essa dinâmica funciona perfeitamente no processo civil, contudo, no processo penal, precisa sofrer um importante ajuste: no processo penal a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não havendo distribuição de cargas (senão mera atribuição) porque o réu está protegido pela presunção de inocência. Portanto, o direito de silêncio não ingressa na dinâmica da necessidade de liberação de carga e tampouco da geração de prejuízo imediato. Esse é o ponto nevrálgico. Contudo, como recém explicado, a questão desloca-se para a dimensão da “assunção do risco” pela perda de uma chance de obter a captura psíquica do juiz.
A segurança, tranquilidade e coerência do interrogatório são fundamentais. É o gran finale do palco probatório[3]. A possibilidade de articulação de uma narrativa coerente, a qual explique, com sentido, a conduta. Não pode ser extraordinária (droga caiu do céu, foi droga achada, etc.), pois deve abrir a possibilidade de ser crível. A postura do acusado quanto mais arrogante pior, suas vestes, a preparação, nervosismo (alguém muito calmo ou agitado não passa boa impressão). E o interrogatório é, sempre, muito arriscado. Sempre. Daí que diante da (in)capacidade do acusado, muitas vezes, com os riscos do silêncio (sempre diz, via imaginário), uma ação coordenada depois de finalizada a produção probatória pode indicar que se deve calar, a fim de minimizar os efeitos adversos. Anote-se que a religião ocupa um papel de destaque no interrogatório, dada a substituição do Padre pelo Juiz no imaginário coletivo, e muitas vezes o acusado precisa se confessar[4].
Como o silêncio pode deslizar em diferentes sentidos para o sujeito, especialmente no ambiente processual brasileiro, ficar em silêncio pode ser um risco a ser mensurado. Exercer direitos no Brasil pode ser uma tarefa clandestina e arriscada, principalmente quando se está movido por verdades absolutas e autoritárias. O risco está posto. A análise deve ser feita em cada processo penal, conforme seus personagens. A dinâmica do processo é única. O silêncio, todavia, pode ganhar sentidos inesperados, dado que os efeitos do silêncio são imprevisíveis. Afinal, quem cala, nem sempre consente. Certo?
[1] ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora Unicamp, 2007, p. 12.
[2] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168
[3] HARTMANN, Helen. Da reforma (retórica) do art. 186 do CPP à inefetividade (persistente) do direito ao silêncio. In: MORAIS DA ROSA. Para um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. Florianópolis; Conceito, 2006, 149-168.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.
* Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
* Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).