A batalha de quem precisa das cotas para superar a deficiência e alcançar o tão sonhado cargo público.
Por Rodrigo Rigaud com entrevista cedida pela Revista Edital
Cerca de 24% da população brasileira possui algum tipo de deficiência, um total de 27 milhões de pessoas. Segundo o IBGE, mais da metade deste contingente encontra-se em idade apta ao trabalho. Eles tem entre 18 e 59 anos e buscam, na iniciativa pública e privada, vagas de acordo com as suas mais variadas formações. O número de concurseiros que possuem alguma deficiência também é grande, estima-se que cerca de 10% dos que inscrevem-se nas dezenas de processos seletivos abertos por ano no país, disputem os, geralmente, 5% de vagas destinadas a portadores de necessidades especiais.
Na luta por seu espaço no mercado de trabalho está a jovem Mariana Lins, de 27 anos. Ela integra os 0,3% da população com alguma deficiência, matriculada no ensino superior, e ostenta o sonho de passar em um concurso público. Mas depender das vagas destinadas a este público não é nada fácil. A concurseira contou, então, como é a sua rotina diária de estudos e como enxerga o sistema de cotas. Afinal, a porcentagem é justa? Confira o que ela respondeu em entrevista à Revista Edital.
Revista Edital – Para contextualizar, precisamos primeiramente entender a sua deficiência e as consequências dessa condição no seu dia a dia. Conta um pouco da sua história pra gente, Mariana.
Mariana Lins – Eu sou natural de Recife, tenho 27 anos, e nasci com uma doença congênita denominada meningomielocele. Essa doença gera uma malformação da coluna vertebral, dificultando a função de proteção da medula, bem como de outros órgãos, razão pela qual desenvolvi a paraplegia.
Mesmo diante das limitações, nunca me isolei ou me senti envergonhada pela minha deficiência. Ao contrário, sempre fui uma pessoa extrovertida, muito alegre. Gosto de passear e fazer amizades. Na infância, vez ou outra, me frustrava, visto que, em decorrência da minha deficiência, nem tudo eu podia fazer sozinha. Na época de férias escolares, por exemplo, queria passear e viajar, mas nem sempre era possível, pois precisava da ajuda de outras pessoas e, em certas ocasiões, não havia ninguém disponível para me acompanhar.
RE – Qual é o papel da família nesse contexto?
ML – Sem sobras de dúvidas meus pais, Ana e Olívio, se esforçaram muito para que eu tivesse uma vida digna. Posso garantir que conseguiram, pois eles sempre estiveram ao meu lado para que eu não sentisse nenhum receio em apresentar minha deficiência. Desde alguns meses de nascida até os quatro anos de idade, sempre fiz exercícios físicos através de fisioterapia, no intuito de fortalecer a musculatura, e depois me recomendaram a natação. O que estava ao alcance dos meus pais foi feito para que eu me tornasse a pessoa que eu sou hoje.
RE – Baseada em sua história de vida, você acredita que o sistema educacional brasileiro oferece as condições mínimas para atender alunos com deficiência?
ML – Acredito que o Brasil precisa se desenvolver muito ainda para atender com competência a demanda de crianças com necessidades especiais, principalmente no sistema público de educação. Meus pais demoraram para me colocar na escola. Acredito que ficaram com medo que eu sofresse algum tipo de preconceito devido à minha deficiência. Portanto, antes de ingressar no ambiente escolar, eu tinha aulas com uma professora particular. Somente aos seis anos, ingressei realmente na escola. Por indicação da minha professora de natação, tivemos a sorte de escolher um colégio particular que preza pela inclusão das pessoas portadoras de deficiência no convívio com os demais estudantes. A escolha foi bem sucedida, pois eu já me sentia incluída e com o apoio que recebi aprimorei minha desenvoltura. Nunca fui uma estudante exemplar, mas nunca perdi um ano. Uma das matérias que eu mais gostava era português.
RE – Como você escolheu sua carreira profissional?
ML – Esse processo foi um pouco tenso, pois na época não me sentia capacitada para escolher a atividade profissional que desejava exercer para o resto da minha vida. Antes de decidir pela carreira jurídica, pensei em várias outras, como por exemplo educação física (pelo fato de fazer natação desde pequena), turismo ou jornalismo. Quando parei para decidir o que eu realmente queria fazer da minha vida, resolvi traçar o caminho do Direito, visto que foi nele que encontrei as maiores possibilidades para minha vida profissional. Além disso, essa foi a carreira do meu avô, que não cheguei a conhecer, mas por quem sinto enorme admiração.
RE – Quais foram as primeiras iniciativas após o bacharelado em Direito?
ML – Desde 2011, após terminar a faculdade, tento aprovação no Exame de Ordem. Nas três primeiras tentativas, estudei por conta própria. Como eu vi que necessitava de apoio, me matriculei em cursinhos preparatórios e assisti as aulas online do CERS. Em 2012, consegui passar para a segunda fase mas, infelizmente, não tive sucesso nesta. Fiz este último exame, mas ainda não consegui o êxito de passar, razão pela qual me matriculei novamente no cursinho. Agora estou com mais vontade e me sentindo mais preparada.
Minha pretensão maior é prestar concurso público para seguir a carreira Promotora do Ministério Público.
RE – Você acredita que as cotas em concursos públicos para portadores de deficiências podem ajudar na concretização desse projeto?
ML – O fato de haver cotas em concursos públicos para portadores de necessidades especiais pode ser visto por dois prismas, um positivo e outro negativo. Acredito que pode ser visto como uma forma de estímulo, visto que pessoas portadoras de deficiência terão um motivo a mais para se dedicar aos estudos e conseguir seguir uma carreira profissional, independentemente da sua condição.
Em contraponto, aqueles que não possuem tais deficiências podem, de certa forma, cultivar o preconceito, o que gera ainda mais exclusão.
RE – No último concurso para Polícia Federal o edital precisou ser refeito porque não destinava vagas para portadores de deficiência. Você acredita que mesmo em casos de carreiras policiais, é possível adaptar as funções para serem exercidas também por quem possui necessidades especiais?
ML – As carreiras policiais são atividades que não se enquadram muito com os casos de portadores de deficiência, principalmente em cargos como agente, que exercem atividades muitas vezes perigosas e cheias de desafios. Agora, quanto aos cargos de escrivão ou delegado, acredito ser possível sim. Apesar de o delegado ter que correr atrás das situações, quem atua executando a ordem na maioria das vezes são os agentes. Um portador de deficiência pode também facilmente exercer a carreira de escrivão, visto que o trabalho é mais interno.
RE – Nos concursos existe muita concorrência, mesmo dentro do percentual das cotas?
ML – De fato existe muita concorrência dentro do percentual de cotas, pois, mesmo que não seja divulgado, há muitos portadores de deficiência que desejam ingressar na carreira pública.
RE – Você acredita que este percentual deveria ser maior?
ML – Na minha opinião, o percentual de vagas para portadores de deficiência é suficiente, visto que se fosse maior não haveria esforço para ingressar na carreira pública. Sem luta não se chega ao seu objetivo. Se fosse fácil ninguém iria querer.
RE – Que outras medidas inclusivas você acredita necessárias para um país mais igualitário?
ML – Umas das medidas primordiais para que possamos ter um país mais igualitário é possibilitar aos portadores de deficiências mais liberdade, promovendo melhoria nos acessos públicos, mais precisamente em ruas e calçadas, para que possamos nos locomover com mais facilidade.