Por Luiz Dellore*
Como advogado militante, professor universitário e verdadeiro entusiasta do processo civil, acompanhei a tramitação do projeto do Novo Código de Processo Civil (NCPC) desde a sua gênese, a partir de 1º/10/09 (data da assinatura do ato que criou “comissão para elaborar o anteprojeto de lei de um novo Código de Processo Civil”).
Desde então, estive presente a audiências públicas, assisti a sessões na Câmara dos Deputados, debati com diversos colegas processualistas de todo o país (virtual e presencialmente), conversei com vários parlamentares [1], sugeri alterações legislativas, li artigos sobre o tema, escrevi artigos sobre o tema [2], assisti a palestras referentes ao assunto, ministrei palestras referentes ao assunto, vibrei com alterações no texto, lamentei modificações no texto. Estive no Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste (e em 2015 estarei no Norte) e participei da criação um centro de estudos processuais [3]. E, seguramente o principal: fiz alguns bons amigos [4]. Aliás, isso tudo sem participar de qualquer das comissões oficiais que auxiliaram na redação do texto.
Esse ciclo se encerrou no dia 17/12/14, com a aprovação do texto final do PL 166/10 pelo Senado. Resta ainda a sanção (e eventuais possíveis vetos), mas é fato que a fase de debates se encerrou, sendo remota a possibilidade de veto substancial ao projeto.
Qual o saldo passado esse lustro? Temos um novo CPC. Desde o início, manifestei-me contrário a esse NCPC. Não estive nem estou sozinho. O Código poderia ter avançado muito, em diversas matérias, entre elas, para ficarmos em um exemplo expressivo, no tocante à superação do paradigma papel para o meio eletrônico. Mas isso já é passado e lá deve ficar.
Agora, como afirma um desses grandes amigos que fiz no período [5], é hora de nos resignarmos e aceitarmos a maioria – que prevaleceu no sentido de termos um novo Código. De forma alguma devemos “torcer contra”; ao revés, o momento é de buscar extrair do texto e do sistema a melhor interpretação possível, para que o desiderato do Código (e, por certo, de todos os processualistas) seja atingido: um processo mais rápido, efetivo e seguro.
Ainda assim, as previsões de imediata agilidade seguramente não serão atingidas [6]. O problema da morosidade não é (só) legislativo, mas especialmente estrutural e cultural. Contudo, isso é tema para outro artigo.
Neste momento, pretendo destacar 20 das principais inovações do NCPC – que podem ser positivas, negativas e, acredite, positivas e negativas ao mesmo tempo:
(i) criação de uma audiência obrigatória de “conciliação e mediação” antes da apresentação de contestação pelo réu – o que pode resultar na efetivação de acordos; mas, também, propiciará uma ferramenta para protelar o processo, para o réu mal intencionado (o que não poderá ser presumido pelo magistrado, para fins de aplicaçãode penalidades);
(ii) citação do réu sem contrafé, nas ações de família, mas para que compareça à tal audiência – inovação que seguramente será arguida como inconstitucional, por violar a ampla defesa;
(iii) possibilidade de o juiz redistribuir o ônus da prova, no que pode ser denominado de “ônus dinâmico da prova” – o que já vem sendo aplicado por alguns juízes, mesmo sem base legal, mas o NCPC estipula que isso deve ser informado pelo juiz;
(iv) novas obrigações quanto à fundamentação da sentença, impondo ao magistrado que aprecie, tópico por tópico, todos os argumentos levantados pelas partes (ainda que absolutamente impertinentes), sob pena de nulidade – dispositivo já objeto de preocupação de diversos magistrados, considerando as dificuldades e maior tempo para que assim se proceda;
(v) mudança nos limites da coisa julgada, não mais existindo a ação declaratória incidental, pois a questão prejudicial será coberta pela coisa julgada, independentemente de pedido das partes – no que, para mim, é uma das piores inovações do NCPC, pois trará insegurança para as partes e a possibilidade de uma simples causa se transformar, no decorrer da tramitação, em um processo de grande relevância;
(vi) determinação de julgamento das causas em ordem cronológica, ou seja, em tese não sendo possível o julgamento de uma simples ação de indenização se ajuizada posteriormente a um complexo processo coletivo – dispositivo candidato a ser dos primeiros a “não pegar”;
(vii) combate à terrível jurisprudência defensiva, buscando realmente que o Judiciário se preocupe com o mérito e não com questões formais menores, na admissibilidade dos recursos – ainda que o NCPC esteja atrasado em relação a determinados aspectos já modificados pela jurisprudência dos tribunais superiores;
(viii) tentativa de estabilização da jurisprudência, com o maior respeito aos precedentes por parte dos tribunais e juízes, sendo esse, no meu entender, um dos principais pontos positivos do NCPC – ressaltando, contudo, tratar-se muito mais de um problema cultural que legislativo;
(ix) ainda para dar mais segurança ao sistema, possibilidade de modulação dos efeitos das decisões judiciais, especialmente no caso de mudança de entendimento jurisprudencial, algo que já é realizada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, mas que ainda encontra resistência nos demais tribunais – tratando-se, portanto, de uma saudável inovação;
(x) criação do incidente de coletivização das demandas, que é a possibilidade de o juiz poder converter uma causa individual em coletiva, ao verificar a amplitude do tema debatido nos autos – o que me parece altamente nocivo ao autor e ao sistema, pois o juiz deixa de ser parte imparcial para praticamente se tornar advogado em favor do autor;
(xi) criação do incidente de resolução de demandas repetitivas, para que causas massificadas sejam julgadas pelos tribunais (exato, em tese cada tribunal pode julgar seu IRDR, e em sentidos inversos) e, a partir daí, sirvam como precedente para os demais – ferramenta que encontrará um grande ponto de conflito com o processo coletivo;
(xii) unificação do processo cautelar e da tutela antecipada, com o fim do processo cautelar autônomo e de cautelares específicas muito utilizadas no cotidiano forense (arresto e sequestro) – acredito que essas cautelares patrimoniais continuarão a ser utilizados no cotidiano forense, com os mesmos requisitos hoje existente (como vimos com a imissão de posse, prevista no CPC39, não no CPC73 e até hoje presente no cotidiano forense);
(xiii) contagem dos prazos processuais somente em dias úteis, o que é apontado como uma grande vantagem por permitir “fim de semanas e feriados” aos advogados – contudo, considerando os diversos feriados estaduais e municipais, essa vantagem poderá se tornar uma desvantagem e acarretar prejuízos aos advogados, sendo que uma solução mais simples seria simplesmente aumentar os prazos e prosseguir com a mesma forma de contagem de hoje;
(xiv) possibilidade da penhora de salário acima de 50 salários-mínimos – ainda que elevado o limite a partir do qual possível a constrição (especialmente para padrões brasileiros), no meu entender a melhor inovação do NCPC, ao quebrar o dogma da absoluta impenhorabilidade de salários e vencimentos no direito processual brasileiro, regra anacrônica que não encontra paralelo em outras codificações modernas (esperamos que o dispositivo não seja vetado – como já ocorreu em 2006, quando dispositivo análogo e melhor foi vetado);
(xv) criação de honorários recursais, ou seja, imposição de honorários além dos fixados em 1º grau – o que é positivo em relação a matéria pacificada, mas onera indevidamente o litigante quando a situação jurisprudencial ainda esta indefinida;
(xvi) mudança dos honorários advocatícios contra a fazenda pública, com a diminuição e escalonamento dos honorários em relação aos entes estatais, conforme o valor da causa (com mínimo podendo ser de 1%, enquanto para o particular sempre é 10%) – aumentando e não diminuindo as distinções processuais entre o Estado e os particulares;
(xvii) honorários advocatícios previstos como crédito alimentar do advogado – como recentemente reconhecido pelo STJ na recuperação de crédito;
(xviii) fim da admissibilidade do REsp e do RE na origem, de modo que, interposto o recurso para Tribunal Superior, ele será imediatamente remetido para o STF ou STJ – o que, na minha visão, exatamente no sentido oposto ao do NCPC, estimulará mais interposição desses recursos, pois o advogado saberá que o seu REsp ou RE será analisado por alguém em Brasília;
(xix) fim dos embargos infringentes, mas inserção de uma técnica de julgamento em que novos magistrados serão chamados se houver decisão por maioria, independentemente de manifestação das partes – o que se de um lado permite maior debate no Tribunal, do outro trará uma série de problemas burocráticos no cotidiano forense, que podem até mesmo desestimular a divergência pelos magistrados;
(xx) criação do negócio jurídico processual, ou seja, a possibilidade de as partes, de comum acordo, alterarem o procedimento para a tramitação do processo – dispositivo que, creio, será pouco utilizado e principalmente adotado quando tivermos processualistas defensores do tema dos dois lados da demanda. Afinal, se não há consenso quanto ao mérito (o conflito em si), haveria consenso – além de disposição e tempo para debater o assunto – em alterar o procedimento? Em poucas causas, complexas, pode até ser aplicado, mas não o será na maior parte das demandas.
Desta breve análise das inovações, tenho que o saldo é negativo. Mas, como exposto anteriormente, o momento é de conhecer as inovações e buscar a interpretação que melhor atinja o objetivo de celeridade, efetividade e segurança. Este é o papel da doutrina daqui para adiante e com esse espírito é que estudarei o NCPC. Vamos juntos?
* Mestre e Doutor em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor de Direito Processual do Mackenzie, EPD, IEDI e IOB/Marcato e professor convidado de outros cursos em todo o Brasil. Advogado concursado da Caixa Econômica Federal. Ex-assessor de Ministro do STJ. Membro da Comissão de Direito Processual Civil da OAB/SP, do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e diretor do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo).