“Juiz sem experiência de vida não está preparado o bastante para julgar”
Por Pedro Canário *
Em quatro anos e dez meses, o ministro João Otávio de Noronha será presidente do Superior Tribunal de Justiça. Dos mais antigos integrantes da corte, ele passou os últimos anos em posições privilegiadas de observar e interferir no processo de formação de juízes do Brasil.
O diretor da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) é crítico: “Aqui você faz uma prova de decoreba, um teste psicotécnico, toma posse do cargo, faz um curso de um mês e começa a trabalhar”, afirma, em entrevista à ConJur. Noronha esteve na França para acompanhar o sistema de Justiça e ver como são formados os magistrados de lá. E tirou alguns exemplos, como um curso de 27 meses que faz parte do concurso. Quem não for aprovado ao final do período, não pode ser juiz.
“Como é que um jovem de 24 anos que nunca nem namorada teve direito vai julgar causas de Direito de Família? Que experiência ele tem? Como ele pode sentar com a senhora idosa que está separando, com problemas com os filhos e o marido, e conciliar?”, questiona. “O jovem juiz precisa ser preparado, aprender a medir as repercussões de suas decisões no seio social, estudar psicologia judiciária.”
Noronha também trata de uma realidade já incontornável no Brasil. Ao juiz não basta conhecer Direito, ter cultura jurídica e domínio da técnica judiciária. “É preciso ser um líder”, vaticina. O ministro conta que o juiz precisa estudar administração e saber administrar uma vara. Segundo ele, muitas vezes a produtividade é afetada por problemas de relacionamento entre o magistrado e os funcionários, ou porque ele trata mal os servidores e passa a ser boicotado.
O ministro também acaba de terminar seu mandato como ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Durante as eleições presidenciais de 2014, foi corregedor-geral Eleitoral. Em outras palavras, o “xerife” do processo eleitoral.
A conclusão a que Noronha chega é que o maior problema dos partidos é a falta de organização, o que se refle em contas mal prestadas.
Ele concorda com a ideia de que as eleições estão cada vez mais judicializadas. “Todo mundo que perde quer ganhar no tapetão.” Mas também observa o outro lado da mesma moeda: “A influência do poder econômico e do poder político é altamente questionada, e macula a vontade popular. Se a Dilma tivesse dito, por exemplo, que não teria dinheiro para aumentar — como ela já deveria saber — o Bolsa Família, e não teria dinheiro para o crédito educacional… Se tivesse dito toda a verdade, o eleitor teria votado nela, na mesma quantidade? Eu não acredito. E isso é o quê? É abuso de poder político”.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor esteve na França, como diretor das escolas de magistratura. Que tipo de comparação é possível fazer entre os juízes de lá e os brasileiros?
João Otávio de Noronha — Estive na França examinando seu sistema de recrutamento de juízes. No Brasil, você faz uma prova de decoreba, depois um psicotécnico, toma posse, faz um curso de um mês e começa a trabalhar, julgando causas com plena autonomia, que importam, com repercussão no patrimônio e na liberdade do seu semelhante. Na França é o contrário, o juiz passa 27 meses na escola da magistratura, mais de dois anos. Mas não fica estudando Direito Civil e Direito Constitucional, ele fica aprendendo a ser juiz. Estuda psicologia judiciária.
ConJur — O juiz entra na carreira mais preparado para o trabalho que fará, então.
Noronha — O juiz de 22, 23, 24, 25 anos que passa no concurso não tem uma experiência de vida, nem é preparado para ser juiz. Como é que um jovem de 24 anos que nunca nem namorada teve direito vai julgar causas de família? Que experiência ele tem? Como ele pode sentar com a senhora idosa que está separando, com problemas com os filhos e o marido, e conciliar? Ele precisa ser formado para isso, precisa ser preparado para fazer a mediação. Não cabe ao juiz maltratar o réu, o réu tem um mínimo de dignidade. Precisamos aprender que a pena tem uma função reparativa e não só punitiva. Estamos tomando a pena no Brasil hoje como um instrumento de vingança institucional.
ConJur — O que o juiz brasileiro precisa aprender?
Noronha — Precisamos preparar o jovem para lidar com a administração da vara. Às vezes ele não produz porque administra mal, trata mal seus funcionários e é boicotado pela sua equipe. Ele precisa aprender a ser líder, a decidir com segurança. O jovem precisa ser preparado, estudar psicologia judiciária, aprender a medir a repercussão das suas decisões no seio social. Você às vezes, por uma formalidade, tira uma criança de um lar e põe num abrigo, tenho visto muito isso. Temos que preparar o jovem a ser juiz, e isso requer um espaço de tempo e requer investimento, precisamos aprender a investir em formação. E a Enfam é importante para direcionar e acompanhar a formação dos magistrados recém-ingressos na carreira, de forma a garantir-lhes uma formação profissional baseada numa abordagem humanística.
ConJur — Hoje não se investe em formação?
Noronha — O Brasil não tem essa paciência. Os tribunais querem, logo que o juiz é aprovado, colocá-lo numa vara do interior. É pior ficar sem juiz ou colocar um juiz mal preparado, que vai assumir a comarca e criar mais problemas do que resolver, e desmoralizar a própria instituição? Essa é a nossa grande preocupação: formar um juiz para que ele possa entregar à sociedade uma prestação jurisdicional não apenas justa, mas adequada.
ConJur — O que deve ser feito para se chegar a isso? Basta mexer no concurso?
Noronha — Precisamos mexer no concurso, mas nós temos trabalhado a formação. Os juízes hoje já ficam 420 horas [em curso], já ampliamos. Antes ficavam uma semana, depois passou para um mês e agora ele fica quatro meses estudando. Mas é pouco, precisamos ampliar, criar a verdadeira universidade da magistratura, onde o cidadão vai aprender a lidar com tudo, a julgar todos os tipos de causa, de empresa, de família, de sucessão.
ConJur — O juiz brasileiro é preparado?
Noronha — De uma certa forma, sim. Muito pelo seu talento, pela sua dedicação. Não falta cultura jurídica, mas de preparação de lidar como juiz. Decidir é uma arte, é um sacerdócio, você tem rituais, tem que ter psicologia. Não pode ofender o réu, você tem que tratar bem os advogados. Quantas brigas, quantos atritos têm entre juízes e advogados e promotor? Isso é falta de preparação. O juiz tem que se tornar um líder, tem que administrar a sua audiência, administrar o seu gabinete, lidar com as pessoas, relacionar com a sociedade. E as atividades da Enfam possibilitam ao juiz entender que é um agente político capaz de construir o modelo de justiça que os brasileiros anseiam. Uma formação mais completa possibilita ao magistrado refletir sobre as consequências de suas decisões na sociedade.
ConJur — Mas ainda existe a mentalidade de que o juiz não precisa se preocupar com a sentença tecnicamente perfeita, porque há três instâncias para corrigir…
Noronha — É isso o que queremos mudar. O juiz não tem que se desincumbir do processo, ele tem que entregar uma prestação jurisdicional justa, proferir uma sentença que resolva o conflito, que apazigue as partes. É um ato de irresponsabilidade julgar pensando que a instância superior vai reformar. Fica todo mundo fugindo da sua obrigação, que é entregar uma prestação jurisdicional justa. Isso é uma molecagem, um mal a ser combatido. O juiz tem que sentir que é importante. Ele decide, tem o poder de contribuir para a formação de uma pauta social. A sociedade se comporta e se pauta conforme as decisões judiciais, e ele tem que ser o primeiro agente disso, a dar exemplo nas suas decisões.
ConJur — O senhor concorda com a criação de filtros de acesso ao STJ?
Noronha — Plenamente. No mundo inteiro, os tribunais superiores têm crivo. Toda corte superior deve apenas julgar questões relevantes, e não se congestionar de processos e ficar se desincumbindo julgamento de causas repetitivas. Aqui devemos dar a última palavra na interpretação da lei federal. Temos que ter tempo para elaborar boas decisões e interpretar, e na medida em que a gente fica julgando, recebendo 1.5 mil, 2 mil processos todo o mês, não temos tempo para decidir com maturidade e com a análise que o jurisdicionado espera. Por isso precisamos de um filtro. O mundo inteiro tem. Não existe tribunal superior em que chegue a quantidade de processos que chega aqui.
ConJur — E esse filtro seria a partir do quê?
Noronha — Primeiro seria um procedimento de arguição de relevância, como tem no Supremo. Há uma PEC no Congresso sobre isso. Depois, por meio da inibição de alguns recursos desnecessários. E terceiro, tornar irrecorríveis decisões que já estão em conformidade com a orientação do STJ.
ConJur — Essa formulação exigiria mais dos juízes das instâncias inferiores, e o senhor mesmo aponta que há falta de preparo na magistratura.
Noronha — Há certa falta de preparo no inicio, mas muitos conseguem se superar em tempo e ser bons juízes. Mas, como o sujeito não foi formado adequadamente, aqueles que não têm vocação e nem tanto preparo técnico vão ser juízes ruins a vida inteira, e a nossa finalidade é não deixar que o juiz ruim entre no quadro da magistratura. Ou seja, é o concurso avaliá-lo em dois anos, e se ver que ele não tem pendor, ele sai.
ConJur — A magistratura costuma apontar que o CNJ tem metas ambiciosas de produtividade. Dá pra conciliar celeridade e qualidade?
Noronha — Não sei, mas essa obsessão por produtividade não pode ser tão grande como se tem visto. Se eu, aqui no tribunal, parar e for julgar só agravo, baixo meu número de processos. Só que os processos difíceis, os que a parte está esperando há muito tempo, vão ficar parados. Eu posso julgar 100 processos mais rápido que um só, mas esse um está aqui há muito mais tempo que os outros. É razoável não julgá-lo? Então, é necessário compatibilizar qualidade com velocidade, com a produtividade, só que tem que lembrar: no gabinete entram processos fáceis e repetitivos e processos difíceis, que têm que ter a mesma assistência que os fáceis. Por isso eu tenho muito receio e muita desconfiança do juiz muito produtivo. Não é um critério fácil de se aferir, precisava olhar cada gabinete para ver o que chega e o que sai qualitativamente.
ConJur — O que o senhor acha da transferência da análise da admissibilidade para as instâncias superiores?
Noronha — É inviável. É uma ingenuidade de quem defende essa tese que nós podemos acabar com a duplicidade do juízo de admissibilidade. É preciso dizer que, dos recursos especiais indeferidos nos tribunais regionais federais e nos tribunais de Justiça, apenas a metade entra com agravo para cá. Então, já segura a metade, quem vê que não tem chance não vem. O ganho de recebermos a metade do que manda cada estado é não ver todos de uma vez só. Também não adianta aumentar o tamanho da corte. Quanto maior um tribunal, mais difícil é a unificação da jurisprudência. A Corte de Cassação da Itália dobrou o número de juízes e não aumentou a produtividade. Então, temos que fazer o quê? Precisamos aprender a nos comportar conforme a interpretação da lei.
ConJur — E a admissibilidade do que é agravado é grande?
Noronha — É baixa. Do que sobe por meio de agravo, julgamos não mais que 10%.
ConJur — Entrando agora nas questões eleitorais, o senhor acha que a Justiça Eleitoral tutela demais a vontade do eleitor?
Noronha — Há realmente um excesso de tutela. A lei eleitoral regula o tamanho da propaganda, o tamanho do outdoor. Isso não era questão de ser regulada pela Justiça Eleitoral, cria uma burocracia, uma intervenção demasiada. Mas, afora isso, o que sobra de regulamento é muito importante para o TSE. A Justiça Eleitoral garante eleições limpas e transparentes, a urna eletrônica é um sucesso. Houve impugnação e não se provou nada. As impugnações dos registros têm tido julgamentos rápidos, veja quantos candidatos fichas-suja foram eliminados do sistema. A Justiça Eleitoral tem conseguido purificar um pouco o sistema eleitoral.
ConJur — A purificação das eleições não é, ou deveria ser, tarefa do eleitor?
Noronha — Não. Uma coisa é o eleitor votar, e a gente nunca despreza a vontade do eleitor. Mas e quando o eleitor é tapeado? Quando se utiliza dinheiro público extorquido para prometer algo que sabe que não vai realizar? Você acha que o eleitor sabia que o dinheiro da Petrobras estava financiando campanha? Se o eleitor soubesse, teria votado naqueles candidatos? É preciso alguém para zelar pela vontade do eleitor.
ConJur — E como é que se faz isso?
Noronha — Eliminando do sistema todos aqueles que burlaram o eleitor. A finalidade da Justiça Eleitoral é exatamente fazer prevalecer o voto popular consciente e combater as fraudes eleitorais. Paralelo a isso, temos a corrupção. As empresas doam para depois ganhar licitações, para renovar contratos, se metem em dívida para doar para a campanha. Isso é um absurdo que tem que ser banido, e está agora a nu no Brasil, o que é muito bom. O país está vendo o que estava atrás dessas obras, desse crescimento exagerado da Petrobras.
ConJur — O fim do financiamento eleitoral por empresas ajuda a combater a corrupção nas eleições?
Noronha — Não. Sou favorável ao financiamento empresarial, mas que se controle para evitar a lavagem. O pior é o caixa dois. Vai permitir financiamento público. Os funcionários públicos podem doar? Olha o PT, que tem um dízimo aí. Você acha o dízimo legal?
ConJur — Como assim?
Noronha — Criam cargos em comissão para aumentar a renda do partido, e o partido que está no poder sempre vai dar emprego para ter renda e aumentar. Por isso eu não acredito que a proibição do financiamento eleitoral vá resolver. O fator da corrupção não é porque tem doação de empresas privadas, é as pessoas corruptas estarem no sistema. Hoje eu duvido que as grandes construtoras vão fazer o que fizeram.
ConJur — Se desse transparência ao processo, talvez fosse mais efetivo, não é?
Noronha — Se você permitir a doação de pessoa jurídica, mas com site aberto, dizendo quem doou, quanto doou e para quem, e o partido disser para quem deu e de onde veio o dinheiro, ajudaria muito. Porque o eleitor saberá que o deputado está votando favorável a essa ou aquela empresa por ter recebido tanto na campanha dele.
ConJur — Existem outras ideias além do afastamento das empresas, como a regulamentação do lobby, ou proibir empresas que doaram para eleições de participar de licitações. Isso resolveria?
João Otávio de Noronha — Não. Porque aí estaríamos pressupondo que toda licitação é marcada e fraudulenta. Temos que corrigir o processo de licitação. Que se faça um processo de licitação sério, que o tribunal de contas fiscalize. Se a licitação for séria, acabou o problema. Não importa que a empresa tenha doado ou não. O Estado interferir na relação não resolve, proibir não adianta. Se a empresa é proibida de participar, bota um testa de ferro, por exemplo.
ConJur — As eleições estão ficando mais judicializados?
Noronha — Muito! Eu nunca vi um índice tão alto de judicialização como o das duas últimas eleições. Isso não é bom, todo mundo que perde quer ganhar no tapetão. Outros vêm [ao tribunal] com razão. A influência do poder econômico e do poder político é altamente questionada, e macula a vontade popular. Se a Dilma tivesse dito, por exemplo, que não teria dinheiro para aumentar — como ela já deveria saber — o Bolsa Família, e não teria dinheiro para o crédito educacional… Se tivesse dito toda a verdade, o eleitor teria votado nela, na mesma quantidade? Eu não acredito. E isso é abuso de poder político.
ConJur — Da experiência que o senhor teve como corregedor eleitoral, o que aponta como a maior dificuldade dos partidos?
Noronha — É a má organização. Muitos têm dificuldades de prestar contas porque são desorganizados. Outra dificuldade é legalizar dinheiro que, como a gente viu, entrou de formas escusas.
* Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.