O ingresso de pessoas com deficiência em cargos da carreira de policial federal é um assunto que vem sendo discutido na Justiça há mais de dez anos e que ganhou força em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a reserva de vagas para deficientes nas seleções para a atividade-fim da Polícia Federal (PF). Após conseguir fazer valer a cota nos concursos para escrivão, delegado e perito – concluídos este ano e que chegaram a ficar suspensos por dez meses por conta da queda de braço na Justiça – o Ministério Público Federal (MPF) tenta agora fazer com que a decisão do STF tenha efeitos práticos, por meio da adequação das etapas do concurso, incluindo os testes físicos e o curso de formação profissional, cujo nível de exigência seria uma barreira para a aprovação de deficientes.
Responsável pelo caso, o procurador da República Leonardo Andrade frisou em entrevista que nos concursos realizados desde que a reserva de vagas foi implementada, nenhum deficiente foi aprovado entre os 957 habilitados. “A dinâmica do concurso impede que esses candidatos sejam aprovados”, argumentou. O procurador reforçou que, a partir da decisão de 2012 do STF, a PF teria que ter promovido um estudo para adaptar as etapas do concurso aos diferentes níveis de deficiência, conforme a Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF).
Ele destacou também que o MPF defende o direito à reserva de vagas como forma de inclusão da pessoa com deficiência na sociedade e apontou que a inclusão de deficientes tanto em Forças Armadas quanto em cargos policiais já acontece em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Suécia. “O MPF vem realmente se esforçando no sentido de viabilizar a inclusão das pessoas com deficiência que possam efetivamente exercer as atribuições do cargo, dentro de uma base de razoabilidade, com a maior plenitude possível”, afirmou Andrade.
O que motivou o MPF a questionar o concurso da PF com relação à participação de pessoas com deficiência?
Leonardo Andrade – Já há condenação da União de forma definitiva, depois de 12 anos de tramitação da ação, à obrigação de promover reserva de vagas para pessoas com deficiência nos concursos da PF. E logo depois dessa decisão do STF foram lançados três editais pela PF, para os cargos de delegado, escrivão e perito. Nesses editais até havia a previsão da reserva de vagas, acontece que esse direito no fim das contas acabou sendo frustrado. Ou seja, foi um pseudo reconhecimento do direito, porque formalmente se previu nos editais a reserva de vagas, mas a dinâmica do concurso impedia que qualquer pessoa com deficiência fosse aprovada. Se exigia da pessoa com deficiência, qualquer que fosse o grau, que fizesse as tantas barras, que fizesse a corrida no mesmo tempo de uma pessoas que não tivesse qualquer deficiência. Não houve adaptação nem do exame de aptidão física, nem da etapa da academia de polícia. E além disso, ficou estabelecido uma série de condições clínicas, de saúde, que tornavam a própria deficiência causa de eliminação, na medida em que a pessoa com deficiência não se enquadraria nas condições de saúde que o edital exigia. Só para ter uma ideia, se exigia que a pessoa não tivesse ceratocone, ou que tivesse acuidade visual ou auditiva perfeitas. A própria deficiência já eliminava o candidato. O resultado é que das 957 pessoas que nesses três concursos se declararam serem pessoas com deficiência, absolutamente nenhuma delas foi aprovada. Então, já tivemos três concursos prevendo a reserva de vagas com nenhum aprovado com deficiência. Diante desse quadro, nesse concurso novo, tendo o processo descido para a primeira instância nós falamos para o juiz que a Polícia Federal não está cumprindo a decisão. Ele então convocou uma audiência de conciliação para que a PF participasse e a gente pudesse chegar a um acordo para a alteração desses editais. A PF compareceu, mas já chegou dizendo que tinha ido só para prestar esclarecimento. E como não houve possibilidade de negociação, o juiz determinou a suspensão do concurso para que a Polícia Federal faça as adaptações necessárias.
Como o MPF considera que deve ser essa adaptação dos testes físicos e do curso de formação às necessidades das pessoas com deficiência? E como essa adaptação abrangeria os diversos tipos de deficiência existentes?
Leonardo Andrade – Antes de mais nada é preciso que a Polícia Federal realize um estudo. Ela teve tempo para isso, a decisão do STF é de 2012. O MPF entende que é preciso examinar a Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF). É uma tabela que existe, que classifica os vários graus de deficiência. Assim como existe a Classificação Internacional de Doenças, a CID, existe a classificação de funcionalidades, em que os vários graus de deficiência são classificados. É preciso examinar, de acordo com essa tabela, o grau de deficiência dos candidatos. Identificar quais atribuições do cargo cada um desses graus de deficiência estaria habilitado a exercer. E a partir disso, fazer um escalonamento e definir a forma de se adaptar o exame de aptidão física. Isso significa que a adaptação vai ter que ser feita de acordo com o grau de deficiência, de acordo com essa CIF. Para fins de entendimento, é mais ou menos como seria nas paraolimpíadas, onde se tem a classificação dos vários níveis de deficiência. De cada nível de deficiência se exige um determinado tipo de esforço. Seria mais ou menos isso. Mas para isso, é preciso que haja um estudo, por uma comissão multiprofissional, que a Polícia Federal deveria encomendar.
Isso apenas para fins de adaptação das etapas ou também para determinar quais deficiências seriam compatíveis com o cargo?
Leonardo Andrade – Pode até ser que haja uma linha de corte, isso não está descartado. Mas o fato é que a PF não fez esse estudo até hoje. Cada cargo tem várias atribuições. Será que o fato de uma deficiência ser incompatível com apenas uma dessas várias atribuições já tornaria o sujeito eliminado? Ou será que se ele puder desempenhar 90% das atribuições ele estaria habilitado? O que é necessário é que seja feito um estudo. E aí, pode-se até pensar em uma linha de corte, em fazer um escalonamento, de casos em que realmente não é possível porque o sujeito só consegue exercer uma única atribuição dentre várias que estão previstas. Agora, é preciso que haja esse estudo, que não foi feito.
Com relação à verificação, durante o estágio probatório, da compatibilidade da deficiência, de condições clínicas, sinais e sintomas, com as atribuições do cargo, como isso poderia ser feito sem afrontar a decisão do STF, na avaliação do MPF?
Leonardo Andrade – Haveria uma comissão multiprofissional de acompanhamento da performance do candidato durante o estágio probatório. Com relatórios periódicos sobre a performance deles, sobre se ele está exercendo plenamente as atribuições do cargo ou pelo menos aquelas atribuições para as quais ele estaria habilitado a exercer. Mas de todo o modo, o que é fundamental deixar destacado é que não se faz nada sem que haja um estudo.
Em quanto tempo o senhor acredita que um estudo desse pode ser feito?
Leonardo Andrade – Não sou especialista nesse assunto para dar uma posição do tempo em que isso poderia ser realizado. Teria que haver um embasamento técnico para dizer…
Provavelmente levaria um tempo considerável para ser feito e do outro lado pode existir o argumento da PF de que precisa recompor o seu efetivo. Como o senhor acredita que isso poderia ser conciliado?
Leonardo Andrade – Temos que sentar à mesa e negociar. Foi o que a PF não fez. Sentar à mesa e negociar para poder agilizar isso. O próprio Ministério Público está correndo atrás de um estudo dessa natureza. Talvez com peritos do INSS, da própria casa. Estamos correndo atrás, tentando fazer um trabalho que a PF deveria fazer e não fez.
E como o MPF avalia a viabilidade de pessoas com deficiência exercerem cargos policiais?
Leonardo Andrade – Como regra geral, o MPF entende que deve ser assegurado o direito à reserva de vagas como forma de inclusão na sociedade da pessoa com deficiência. Esse entendimento está embasado na Constituição Federal e na convenção da ONU para inclusão das pessoas com deficiência. E essa não é uma exclusividade do Brasil. O MPF vem realizando estudos, que agora estão em fase de aprofundamento, e identificou que há inclusão de pessoas com deficiência, tanto no âmbito de forças armadas como no âmbito de atividades policiais em outros países, como por exemplo Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Suécia, para citar apenas alguns. O MPF vem realmente se esforçando no sentido de viabilizar a inclusão das pessoas com deficiência que possam efetivamente exercer as atribuições do cargo, dentro de uma base de razoabilidade, com a maior plenitude possível. De acordo com as peculiaridades de cada caso concreto, por exemplo, dos vários graus de deficiência, é preciso que se encontre um ajuste. Mas como regra geral, o MPF vem se empenhando nesse esforço de inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Que medidas serão tomadas pelo MPF, caso a União consiga reverter essa decisão que suspendeu o concurso?
Leonardo Andrade – O MPF já identificou que foi apresentada uma reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, que está com a ministra Cármen Lúcia. Temos acompanhado isso e aí, eventualmente, esse vai ser o foro adequado para a discussão de como a decisão vai ser implementada. Porque até então, a decisão era: implemente. Agora, o esforço que a PF fez para implementar, na visão do MPF, não foi adequado, não foi suficiente. Então, no âmbito dessa reclamação é que eventualmente vai se discutir a forma de implementação. Se o Supremo disser que isso que está aí está atendendo, o MPF vai recorrer eventualmente de uma decisão. É até curioso que o Supremo vá admitir que a sua decisão não teve nenhuma utilidade. Porque por um lado ele determinou a reserva de vagas e por outro, se realmente essa reclamação obtiver êxito, ele vai dizer: “olha, eu falei de brincadeira, não foi para valer. Falei só para constar, em tese.” Porque se realmente o Supremo admitir que o candidato com deficiência tem que concorrer nas mesmas condições no exame de aptidão física com o candidato que não tem deficiência realmente o direito não vai ser observado efetivamente.
E é nessa linha então que o MPF irá apresentar seus argumentos para que sejam feitas de fato as adaptações?
Leonardo Andrade – Exato.
Fonte: Folha Dirigida